Da cidade ao mundo, a crise climática é política

Parecia 1941, mas é 2024 | Foto: Martina Lersch

Estive em Belém na semana passada, a cidade que receberá a Conferência das Partes em 2030, a principal reunião de países sobre mudanças climáticas. É uma cidade que deve muito à pauta ambiental, mas é na minha casa, Porto Alegre, que agora escrevo próximo a uma condição de refugiado climático.

Próximo, mas assim muito distante, a bem da verdade. O mínimo fato de ter luz, estar abrigado, abastecido, seco e seguro de que aqui o Guaíba não chega me faz uma pessoa mais que privilegiada para o momento. Meus parentes e amigos estão em segurança. Logo mais vou dormir na minha cama.

Neste momento há um caos na cidade vizinha a minha e chove durante o que já é a maior enchente da cidade em 83 anos, tragédia que será tristemente noticiada em mais algumas poucas horas. Neste momento, há quase 4 mil pessoas da minha cidade em abrigos provisórios, sem contar quem foi pra casa de parente ou conhecido.

Muito ouvi, li e imaginei sobre a famosa enchente de 1941. Daqui em diante precisarei relatar o que presenciei nos dias da enchente de 2024, quando o Guaíba chegou ao nível de 5,25m, quase dois metros e meio acima da cota de inundação – quando considerado o ponto do Cais Mauá.

Hoje, ainda sob momento de piora desta crise, eu estava de folga, mas passei o dia recebendo fotos e informações. Eu caminhei na rua, fiz doações: uma mãe amamentando me olhou nos olhos e do fundo do coração desejou “que Deus te devolva em dobro” ao receber o que, no fim, era tão pouco para quem estava na situação em que ela se encontrava, numa esquina a quilômetros da ilha onde morava.

Eu vi uma pessoa caminhando aparentemente sem rumo com apenas um chinelo no pé e seu cachorro nos braços. Eu vi crianças brincando em meio ao caos de doações. Vi gente chorando, pessoas com olhar perdido e às vezes com uma mala ao lado. E ainda assim vi muito pouco.

O relato é dolorosamente triste por tudo o que não deveria ter acontecido, porém aconteceu. Porto Alegre, há 50 anos, tem um sistema robusto de proteção a enchentes. Tão forte quanto polêmico e, nos últimos anos, alvo de descaso. A falta de manutenção por parte de gestões municipais simpáticas a projetos imobiliários fomentou, e muito, o seu desmonte, que se não ocorreu na prática, foi por falta de tempo – e de um evento climático extremo como esse de agora.

Se ele tivesse funcionado a pleno, a cidade não teria alagado, me dizem.

O que se denuncia é que gestores da capital gaúcha deixaram de lado a tarefa de verificar se comportas estavam no trilho, se a lubrificação estava em dia, se a vedação funcionava. Não conferiram parafusos certos em locais certos em bombas de bombeamento, que nem sempre eram usadas. Enfim, trabalho para algumas manhãs no ano que foi esquecido. Precisaram de guindaste pra ajeitar comportas, não deu tempo de colocar um tanque de guerra ao lado de outra.

Em paralelo, o governo estadual – patrocinador de um grande projeto que considera a retirada de parte da estrutura deste sistema de defesa em Porto Alegre – promoveu desmonte da legislação ambiental recentemente. Foram pautas sempre “criticadas por ambientalistas”, mas convenientemente aprovadas pelo poder político.

Três semanas antes da torrencial chuva que caiu sobre o Rio Grande do Sul, o governador sancionou a mais recente flexibilização. Seu colega de partido havia relatado e feito aprovar na CCJ da Câmara outra proposta dessas que são capazes de transformar mata em pasto. Denota, então, que é projeto de sua corrente política, não acaso.

Aqui, o governador passou anos dizendo que ouvia a ciência, porém outra vez não quis dar ouvidos a ambientalistas, não raro estudiosos do assunto.

A relação entre política e meio ambiente, contudo, é conflituosa de maneira estrutural, de Norte a Sul. O atual governo do Brasil, ainda que não seja negacionista, ainda que tenha fortalecido algum tipo de atuação na área, não deixa de ser dúbio logo, talvez, em um momento-chave da própria humanidade.

Apesar de falar em transição verde, não veta de vez um projeto que quer perfurar na foz do Amazonas para encontrar petróleo. Por mais seguro que seja, por mais cuidados que tome, este governo admite o risco de um dia vazar óleo próximo a uma das maiores reservas de biodiversidade do planeta.

Volte-se a Belém. A perfuração do poço de petróleo, os recursos de créditos de carbono e seus usos estão em debate pela sociedade e pela academia. Participei de apresentações. Por estar geograficamente distante, talvez não tivesse a ideia da complexidade desta situação, que impacta inicial e diretamente comunidades ribeirinhas, pescadores e moradores da região. Mas que, ao fim, impacta a todos nós.

É impressionante aceitarmos estar distantes deste debate, enquanto tudo em meio ambiente é interligado. Seja na prevenção nas cidades, na liberação para o desmate perto de capitais ou na conivência em aceitar riscos às florestas. Tudo em nome de desenvolvimento, dinheiro, investimento? Em meio a tanta chuva ou tanta seca, vale a pena?

Mais que passou da hora de pensar nisso também quando não estamos sob um evento climático extremo. Aproveitemos por agora, porque logo mais esses períodos serão cada vez mais curtos e cobrarão um preço cada vez mais alto. Não há dinheiro que chegue – ou que valha a pena.

Da energia que não se vê, entre o sacro e o profano

Por certo existe muito mais coisa no Centro Histórico de Santiago de Compostela que história, fé, peregrinação e lojas de souvenires.

Há, também, muita vibração a partir daquilo que não se vê a olhos nus – e que faz a energia correr solta.

Arrepiei-me quando, à noite no hotel, imaginei como seria uma caminhada àquela hora nas ruas dali. Uma hora qualquer e escura, nas apertadas ruas centenárias daquele lugar, testemunhas de um sem fim de histórias de gente de todo o mundo…

…mas também de gente que por ali se criou e viveu, bem antes do conceito de turismo se aplicar ali. Se Santiago é conhecida por sua imponente basílica, a Galícia, a comunidade autônoma da qual faz parte, é uma terra também marcada por forte presença de bruxas, as “meigas”, no que constrói importante parte de sua mística e cultura popular.

Não são necessariamente más, até são conhecidas por suas habilidades mágicas e curativas. Porém são figuras femininas com poder – algo que, no geral, costuma a assustar detentores da força política. Ainda que hoje sejam celebradas, por certo séculos atrás, em plena inquisição, não eram bem vistas ou aceitas pelos vizinhos das igrejas.

Aí que reside todo o conflito invisível naquelas ruas de Santiago. Se a fé, ou algo que o valha, faz com que milhares de peregrinos atravessem a estradas para chegar até o local onde há diversas igrejas católicas, a crença no poder das meigas ainda se faz presente naquela região, anos e séculos após suas histórias ganharem fama.

Um capítulo a mais do embate entre o sacro e o profano mundo afora.

Santiago, as igrejas e a eternidade

Não foi caminhando ou de bicicleta. Muito menos peregrinando. Mas, certa feita – de carro – cheguei a Santiago de Compostela, ao fim de uma tarde de inverno, em que o tempo estava indeciso entre a chuva e o sol – o único elemento constante, sim, era o vento, que entre uma esquina ou outra, mostrava sua força.

Ao me hospedar perto na região central, fiquei a poucas quadras do que é mais interessante naquela cidade: o seu medieval Centro Histórico, onde as ruazinhas bem antigas dividem seu cenário com algumas lojas piscantes de capitalismo e tem seu chão apinhado de turistas de tudo o que é lugar.

O Centro Histórico, onde a cidade em si começou, mais de um milênio atrás, constitue-se num emaranhado de ruas, praças e igrejas – o que denota o tamanho da força e da onipresença do catolicismo (de seus padres, de seu rigor e sua punição) de séculos atrás.

Claro, a mais destacada e, digna de um adjetivo tal como “imponente”, é a Basílica de Santiago, destino final de um sem fim de peregrinos, esses sim que chegam à cidade caminhando ou pedalando, vindos de centenas de quilômetros de distância. À primeira, ela vista impressiona por sua robustez ante a paisagem.

Santiago, nesta região, conta com uma arquitetura antiga, duradoura e impressionante a leigos e a entendidos. Essa se destaca pelo tamanho, mas também pelos detalhes. Em pleno século XXI, oferece uma viagem a uma época medieval – em que pese o excesso de lojas que buscam algum vintém de turistas e peregrinos.

Se há lugares eternos, talvez a praça principal seja um deles. Foi de tirar o fôlego a contemplação – num momento premiado pela boa vontade do clima. Numa segunda visita, já sob forte chuva, se focasse a minha visão no choque entre a água e as pedras que ali estão há séculos, poderia me perguntar: afinal, em que época estou?

Coisa de lugares que são, enfim, eternos.

Certa feita, em Vigo

Uma vez na vida estive em Vigo. Cidade que me pareceu mui simpática, na Galícia, costa espanhola. Localizada entre um relevo proeminente e um mar de um azul profundo, Vigo é um daqueles lugar que se simpatiza à primeira ou à segunda vista.

Estive em Vigo de passagem. Seriam – e foram – poucas horas. Daqueles encontros rápidos e fugazes que temos na vida e em, especial, durante viagens. Daqueles em que o tchau é provavelmente um adeus. Mal deu tempo de tirar foto. Gosto dessas situações. São marcadores de vida.

Estive em Vigo uma vez na vida, de passagem. Mas Vigo mal me viu. E isso porque cheguei quase passando a hora do almoço. Cheguei para pegar a última mesa de um restaurante e, quando acabei a refeição e o postre, já era hora da siesta.

E como os hispânicos respeitam a siesta!

Em pleno centro, lojas fechadas. Não por meia hora, uma horinha. E sim até, pelo menos, 16h30, 17h. Por que a pressa se a vida é longa? Pra que viver uma tarde com sono se pode-se estar relaxado? É uma filosofia e tanto de vida. Sinceramente, admirei.

Simpatizei com Vigo, ainda que mal possa dizer que estive por lá. Mesmo nessas horas fechadas de cidade, achei as poucas ruazinhas do centro aprazíveis de uma caminhada. Vigo, em plena sesta, cavou uma lembrança e uma micro-história que agora eu posso contar.

Se nos veremos de novo? Só o futuro decidirá. Mesmo entre bocejos, gostei de Vigo.

Quando estive perto de D10S

Eu ainda estava nos meus primeiros dias da primeira vez que fui a Buenos Aires. Turista jovem e fã de futebol, acabei em uma partida do Boca, em uma tarde ensolarada de dezembro. Não era qualquer partida e sim uma possível definição de título argentino.

Foi quando estive mais perto de Deus.

Se não o mais famoso e divino, certamente um dos mais idolatrados naquele canto de mundo, que eu aprendia a amar. Era Diego Armando Maradona lá, el D10S para muitos que ali, tanto os que vestiam azul e ouro, como outros tantos que gostam de outras cores na jaqueta.

Naquela época, Maradona recém havia assumido a seleção da Argentina. Comandaria uma das maiores paixões daquele povo. Mas naquele momento não era treinador ou dirigente. Era torcedor. A Bombonera estava lotada e pulsava, numa atmosfera incrível.

Antes da bola rolar, quando a câmera que captava imagens para o telão encontrou Maradona em seu camarote, houve o êxtase. “Marado, Marado”, gritavam. Devotavam aqueles milhares.

Foi inesquecível ver Diego. Mesmo de longe. Aquela cena me ensinou muito sobre o ser argentino. ¡Gracias y que en paz descanse!

Numa homenagem a Maradona, o Direto ao Ponto desta quarta foi sobre ele:

Hora do conto – Ruína y Leveza

Um nariz de cera introdutório

Lembro que botei o olho naquele livro no dia em que o Gonzaga o ganhou, na redação do Correio do Povo. Flertei com a obra, assim como muito já fiz antes, dentro e fora de livrarias. Aquela coisa, uma hora a gente se encontra. Sem pressa. Mais cedo ou mais tarde, certamente, leria Ruína y Leveza, de Júlia Dantas, pelo simples fato de ter simpatizado com o nome, a temática e o texto na orelha.

Como tantas outras vezes, dentro e fora de livrarias, o tempo passou e aquela atração meio que caiu no esquecimento. Só alguns anos mais tarde que nos encontramos. Mas forcei, admito. Em um hiato de leitura, “ainda no tempo em que as redações eram cheias”, recordei o Gonzaga, que de pronto me emprestou o livro. O mundo ainda girava normalmente e a ideia era devolvê-lo dali a alguns. Só que teve uma pandemia no meio do caminho.

Ruína, em meio a mudanças forçadas de rotina, até começou a ser lido, porém no arruma aqui e ali do dia a dia acabou esquecido na mochila do trabalho, que, devido ao home office, nunca mais foi ao trabalho. Por semanas a fio ficou pendurada, como uma decoração da casa.

Pois bem. Recuperado meses depois, voltou à lembrança, ainda que atrás de outros que, mesmo chegando depois, tinham preferência na leitura. O tão momento de encontro entre eu e aquela obra de uns anos atrás, então, acabou sendo apenas no meio das férias, em plena pandemia.

Do livro

Minha mãe, professora de português e literatura, sempre alertou que os romances às vezes começam devagar e só tomam jeito mesmo mais pro meio do livro. Não deixa de ser verdade e, talvez por esse ensinamento materno, valorizo demais uma boa arrancada de texto. A partir disso, aliás, que Gabriel García Márquez se tornou meu escritor favorito.

Nunca tinha lido nada da Júlia, mas o início de Ruína nos prende – literalmente na história – de tal maneira que torna-se incômodo não continuar a ler. Claro, longe de compará-la a Gabo, entretanto a história da protagonista Sara não deixa de nos cultivar a curiosidade de acompanhar a jornada, seja em Porto Alegre, seja em rincões do interior da América Andina.

Sara, desde o começo, me soou tão conhecida. Por também ser do meio da comunicação de Porto Alegre, por suas dúvidas (nem tão) existenciais assim, por sua luta e descoberta de destino. A personagem tem muito paralelo com histórias de jovens comunicadores da capital gaúcha, com a diferença que ela tem a coragem e o incentivo de seguir com uma ideia que lhe chegou no susto.

O formato não linear do romance ajuda a conhecê-la melhor. E ao longo de uma autodescoberta, Sara faz uma ode não-forçada à liberdade sem que sua história escorregue em clichês, que já poderiam ser esperados nas primeiras páginas.

Ao construir sua coragem e desprendimento, a ex-publicitária vira aquelas personagens que gostaríamos de conhecer pessoalmente, de ouvir como foram os detalhes acontecidos e narrados ao longo dos 13 capítulos do livro.

E Sara, quando parte na última página de Ruína y Leveza, deixa a saudade para quem não a acompanhará mais nos dias seguintes.

Sara

Sara me lembrou quando estive quase que por acaso em Bogotá, em agosto de 2012. Me lembrou uma noite fria em que só eu e uma japonesa dormíamos em um quarto meia boca e com diversos beliches de um hostel qualquer e barato da capital colombiana. Muitas e muitas Saras devem passar por lá.

A japonesa, recordo eu, era diferente do estereótipo criado por nós, ocidentais, daquele país. Meio desarrumada, ainda que bastante respeitosa – estava preocupada em não fazer barulho quando saísse, de madrugada, para não me acordar. Tímida, ela mal falava espanhol e estava do outro lado do seu mundo, sozinha. E viajando.

Parte minha certamente toparia seguir com Sara interior latino-americano a dentro, porém a outra parte vive como a primeira fase da personagem. Com menos drama e mais estabilizado, por certo. Mas hoje vai se tornando alguém com cada vez menos experiências que só a estrada e os momentos únicos pelo mundo ensinam.

Aqui, e tão longe

O poente de Santiago, Chile | abril/2018

Sonhei longe hoje à noite. Estive em Buenos Aires, que ali era era tão simples de chegar, mas também andei pelas ruas centrais de Montevidéu. Deve ser o frio desses dias, deve ser a saudade. No sonho, eu sabia que conhecia muito bem aquelas calles, que sempre me deixam tão à vontade na vida real.

Dias atrás me bateu uma saudade de Lisboa, essa cidade que sinto que preciso conhecer bem melhor. Da mesma forma, ainda quero voltar a caminhar mais por Paris para reparar nos detalhes que mal notei em um agosto passado. E até hoje mal acredito que já estive no Japão.

Já há muito tempo em casa, venho sentido falta de embarcar numa viagem longa. De voltar a sentir aquele clima de aventura de se arriscar em outro idioma, de estudar mapas e, principalmente, de andar por esquinas pelas quais provavelmente jamais voltarei.

O mundo é grande e antigo. Ele espera. Ainda vai haver tempo e época para desbravá-lo. Seja a partir de uma banda aqui pelo pampa, seja por terras e idiomas tão, tão diferentes. O mundo é grande. E isso vai passar.

A tempestade na Espanha

Plaza Mayor

Ninguém sabe ao certo quando a pandemia vai terminar, quando a vida, doravante em uma “nova realidade”, emergirá a pleno. Mas depois de algumas semanas de muita dor e milhares de tragédias familiares, o sol parece estar próximo de raiar em alguns lugares, como a Espanha.

Nesta semana, iria entrevistar duas amigas minhas que moram por lá, para o podcast Direto ao Ponto. Iria ser entrevista, virou conversa – que é o que acontece quando as boas entrevistas fluem. Ficou um relato claro de que a pandemia não é “gripezinha” e sim um problema de dimensões catastróficas à sociedade.

Como tudo na vida, essa pandemia vai passar, com mais ou menos dor por aqui. Não foi a primeira grande crise sanitária, provavelmente não será a última. A diferença é que nessa podemos salvar melhor os registros, para quem sabe tirar lições para o futuro, de como atravessaremos essa tempestade.

O resultado está aqui.

 

Obrigado Mariana e Terena por ajudarem nesse relato. Fico feliz pela ajuda, e ainda mais, por saberem que vocês estão bem.

Diários paternos: do futuro

arvore seca

Certamente uma das principais características que se adquire ao tornar-se pai (e mãe) é perspectiva sobre futuro. Sem querer ser generalista, mas imagino que isso ocorra com a maioria: cria-se uma preocupação de se estar presente, ou pelo menos à disposição. Em suma: ter a responsabilidade de não morrer, nem sumir e tentar proporcionar o melhor ambiente possível.

O tamanho desta perspectiva é enorme. Vai desde o cuidado com a temperatura da casa, do passar bem a pomada para se evitar assaduras a preocupações macro, como sobre como estará o mundo daqui a alguns anos. Porque, além de garantir a sobrevivência da minha filha hoje, eu sinceramente gostaria que tenha um mundo habitável e se possível melhor que o meu para viver.

A atenção com o meio ambiente entra aí. As coisas já não parecem nada bem, então desde que a Maria Flor estava protegida no útero, algo já venho fazendo. Ou tentando. Posso garantir, hoje, que emiti bem menos carbono nos últimos meses, cuidei um pouco mais da minha saúde, mas, é claro, isso é muito pouco e incipiente.

Minhas preocupações ambientais cresceram ainda mais neste mês depois de finalizada a leitura da revista piauí de junho (paternidade gera delay nas leituras). Um verdadeiro alarme foi soado após dois textos sequenciais da publicação: no primeiro, a inanição forçada causada pelo ministro do Meio Ambiente na pasta. No segundo, um trecho do livro recém lançado, “A Terra Inabitável – Uma história do futuro”, de David Wallace-Wells, do qual eu gostaria de destacar o seguinte parágrafo:

Não sou ambientalista, tampouco me vejo como alguém particularmente ligado à natureza. Morei a vida toda na cidade, desfrutando dos aparelhos construídos por redes de abastecimento industriais a respeito dos quais pouco penso, se é que penso. Nunca acampei, pelo menos não sem ser obrigado, e embora sempre tenha achado que é basicamente uma boa ideia manter os rios limpos e o ar puro, também sempre admiti ser verdade que há um jogo de perde e ganha entre crescimento econômico e custo para a natureza – e, bem, penso que, na maioria dos casos, eu provavelmente ficaria com o crescimento. Não chegaria ao ponto de matar pessoalmente uma vaca para comer um hambúrguer, mas também não tenho planos de virar vegano. Eu tendo a pensar que, se você está no topo da cadeia alimentar não tem problema bancar o maioral, porque não acho tão complicado traçar uma delimitação moral entre nós e os outros animais, e na verdade considero ofensivo para as mulheres e pessoas de cor que de uma hora para outra ouçamos falar de estender a proteção legal dos direitos humanos para chimpanzés, macacos e polvos, apenas uma geração ou duas após finalmente termos quebrado o monopólio do macho branco sobre o status legal da pessoa humana. Nesses aspectos – em muitos deles, pelo menos –, sou como qualquer outro americano que passou a vida fatalmente complacente e obstinadamente iludido a respeito da mudança climática, que é não apenas a maior ameaça que a vida humana no planeta já enfrentou, como também uma ameaça de categoria e escala totalmente diferentes. Isto é, a escala da própria vida humana.

Bem, as notícias não são boas neste presente, nem parecem que vão melhorar no futuro. O que não deve servir de desculpa para cruzarmos os braços e não fazermos nada. Se não por nós, pelo futuro daqueles que a gente ama e chegaram há pouco por aqui.

Questão de adaptação

smartphones

Eu era criança no condomínio Quebra Mar, em Tramandaí, e incomodava meu avô para comprar o jornal no mercadinho. Esse luxo não era diário, mas sim algo para três ou quatro dias por semana. Então, naquelas manhãs de verão, tínhamos ao alcance da nossa mão um compilado de notícias da véspera ali impressos. Além, claro, das concorridas palavras cruzadas.

Não havia internet, muito menos wi-fi e sequer telefonia na maioria dos apartamentos. Aliás, por se tratar de um condomínio enorme e num formato de quarteirão, o Quebra Mar tinha à disposição um telefone central. E aí podia-se ligar para lá que a administração do prédio anunciava num alto-falante para todos os condôminos ouvirem que havia uma ligação a ser atendida. Uma cena quase surreal, hoje extinta.

Se há mais coisa que mudou daquela época foi a forma de se consumir o jornalismo. E vejo não só por mim, mas por meu sobrinho, que hoje tem até um pouco mais de idade do que eu nessa época. Prestes a completar 14 anos, eu nunca vi ele folhear um jornal.

Pode ser que meu interesse pela imprensa seja maior que o dele, contudo tem uma diferença grande também: trata-se de um guri que antes de aprender a ler já sabia, em um computador, como entrar no Google, chegar ao YouTube e, dali, procurar um vídeo com o seu desenho favorito. Tudo através de ícones que, mais tarde, trocaram de tela e agora estão ao alcance de sua mão, no celular.

Essa adaptação a novos meios, porém, ainda é tabu, em pleno 2019. Isso às vezes segue duro justamente para jornais, que por décadas tiveram exatamente o mesmo modus operandi e se veem hoje entre a suposta segurança da base de assinantes somada à receita publicitária e a ainda instável disputa por crescimento e relevância no meio digital.

Fato é que a direção é uma só. E pra frente, rumo à adaptação. Nesta semana foi a vez do Clarín, de Buenos Aires, anunciar que irá procurar se tornar mais online. O que não significará abandonar de solavanco o papel impresso:

La mayoría de nuestros recursos periodísticos estará destinada a producir contenidos . Otro bloque se concentrará en la edición impresa, adaptando las notas publicadas en el digital y garantizando la máxima calidad. Cuanta más calidad tenga el diario papel, más fácil será la transformación digital. Tenemos que ofrecer un producto digital y un producto impreso del mismo valor.

Fica claro que haverá uma transição do que será prioritário agora. A web deixa de ser um espaço restrito a notas rápidas ou apenas breaking news. Mudança semelhante ao que houve no El País – e com sucesso – alguns anos atrás. O jornal espanhol, antes sediado apenas em Madrid, hoje autointitula-se “O jornal global”. Com razão.

Referência no jornalismo argentino, o Clarín indica que até pode vir seguir o mesmo caminho ao perceber que pode ter “mais leitores do que nunca” hoje em dia. A aldeia é global, já faz uns anos:

Hay un enorme sacudón en la industria de los medios que se renuevan para enfrentar la crisis de la plataforma tradicional del papel y adaptarse a la todavía incierta del digital. Tenemos más lectores que nunca y tenemos más desafíos que nunca: los hábitos de los lectores cambian más rápido que nuestras organizaciones y debemos cambiar si queremos mantener la relación con ellos. Necesitamos estructuras más flexibles y más eficientes con más talentos y capacidades del nuevo mundo.

Eis um dos focos da questão: a relação com o público. No entanto, que audiência é essa: a que está na rua ao lado ou além das fronteiras? Como fidelizá-la: com volume de notícias ou apenas com conteúdos especiais? Acesso gratuito para difusão em massa ou paywall como uma garantia econômica?

As dúvidas ainda são várias, mas é a partir de respostas para essas nada fáceis perguntas que se pode chegar à sustentabilidade no meio online. E buscar essa sustentabilidade é questão de sobrevivência para os jornais. Cada vez mais urgente, todavia, vale a ressalva, é primeiramente aos jornais de grandes centros urbanos, onde a internet é plenamente difundida e estável – situação que não ocorre em muitas localidades do interior.

Podem haver diferentes caminhos em relação a nicho, conteúdos e apostas, mas a direção é uma só. O guri que 20 anos atrás buscava jornal de Porto Alegre no mercadinho do condomínio de Tramandaí hoje assina o The New York Times sem nunca ter colocado os pés nos Estados Unidos.