Da cidade ao mundo, a crise climática é política

Parecia 1941, mas é 2024 | Foto: Martina Lersch

Estive em Belém na semana passada, a cidade que receberá a Conferência das Partes em 2030, a principal reunião de países sobre mudanças climáticas. É uma cidade que deve muito à pauta ambiental, mas é na minha casa, Porto Alegre, que agora escrevo próximo a uma condição de refugiado climático.

Próximo, mas assim muito distante, a bem da verdade. O mínimo fato de ter luz, estar abrigado, abastecido, seco e seguro de que aqui o Guaíba não chega me faz uma pessoa mais que privilegiada para o momento. Meus parentes e amigos estão em segurança. Logo mais vou dormir na minha cama.

Neste momento há um caos na cidade vizinha a minha e chove durante o que já é a maior enchente da cidade em 83 anos, tragédia que será tristemente noticiada em mais algumas poucas horas. Neste momento, há quase 4 mil pessoas da minha cidade em abrigos provisórios, sem contar quem foi pra casa de parente ou conhecido.

Muito ouvi, li e imaginei sobre a famosa enchente de 1941. Daqui em diante precisarei relatar o que presenciei nos dias da enchente de 2024, quando o Guaíba chegou ao nível de 5,25m, quase dois metros e meio acima da cota de inundação – quando considerado o ponto do Cais Mauá.

Hoje, ainda sob momento de piora desta crise, eu estava de folga, mas passei o dia recebendo fotos e informações. Eu caminhei na rua, fiz doações: uma mãe amamentando me olhou nos olhos e do fundo do coração desejou “que Deus te devolva em dobro” ao receber o que, no fim, era tão pouco para quem estava na situação em que ela se encontrava, numa esquina a quilômetros da ilha onde morava.

Eu vi uma pessoa caminhando aparentemente sem rumo com apenas um chinelo no pé e seu cachorro nos braços. Eu vi crianças brincando em meio ao caos de doações. Vi gente chorando, pessoas com olhar perdido e às vezes com uma mala ao lado. E ainda assim vi muito pouco.

O relato é dolorosamente triste por tudo o que não deveria ter acontecido, porém aconteceu. Porto Alegre, há 50 anos, tem um sistema robusto de proteção a enchentes. Tão forte quanto polêmico e, nos últimos anos, alvo de descaso. A falta de manutenção por parte de gestões municipais simpáticas a projetos imobiliários fomentou, e muito, o seu desmonte, que se não ocorreu na prática, foi por falta de tempo – e de um evento climático extremo como esse de agora.

Se ele tivesse funcionado a pleno, a cidade não teria alagado, me dizem.

O que se denuncia é que gestores da capital gaúcha deixaram de lado a tarefa de verificar se comportas estavam no trilho, se a lubrificação estava em dia, se a vedação funcionava. Não conferiram parafusos certos em locais certos em bombas de bombeamento, que nem sempre eram usadas. Enfim, trabalho para algumas manhãs no ano que foi esquecido. Precisaram de guindaste pra ajeitar comportas, não deu tempo de colocar um tanque de guerra ao lado de outra.

Em paralelo, o governo estadual – patrocinador de um grande projeto que considera a retirada de parte da estrutura deste sistema de defesa em Porto Alegre – promoveu desmonte da legislação ambiental recentemente. Foram pautas sempre “criticadas por ambientalistas”, mas convenientemente aprovadas pelo poder político.

Três semanas antes da torrencial chuva que caiu sobre o Rio Grande do Sul, o governador sancionou a mais recente flexibilização. Seu colega de partido havia relatado e feito aprovar na CCJ da Câmara outra proposta dessas que são capazes de transformar mata em pasto. Denota, então, que é projeto de sua corrente política, não acaso.

Aqui, o governador passou anos dizendo que ouvia a ciência, porém outra vez não quis dar ouvidos a ambientalistas, não raro estudiosos do assunto.

A relação entre política e meio ambiente, contudo, é conflituosa de maneira estrutural, de Norte a Sul. O atual governo do Brasil, ainda que não seja negacionista, ainda que tenha fortalecido algum tipo de atuação na área, não deixa de ser dúbio logo, talvez, em um momento-chave da própria humanidade.

Apesar de falar em transição verde, não veta de vez um projeto que quer perfurar na foz do Amazonas para encontrar petróleo. Por mais seguro que seja, por mais cuidados que tome, este governo admite o risco de um dia vazar óleo próximo a uma das maiores reservas de biodiversidade do planeta.

Volte-se a Belém. A perfuração do poço de petróleo, os recursos de créditos de carbono e seus usos estão em debate pela sociedade e pela academia. Participei de apresentações. Por estar geograficamente distante, talvez não tivesse a ideia da complexidade desta situação, que impacta inicial e diretamente comunidades ribeirinhas, pescadores e moradores da região. Mas que, ao fim, impacta a todos nós.

É impressionante aceitarmos estar distantes deste debate, enquanto tudo em meio ambiente é interligado. Seja na prevenção nas cidades, na liberação para o desmate perto de capitais ou na conivência em aceitar riscos às florestas. Tudo em nome de desenvolvimento, dinheiro, investimento? Em meio a tanta chuva ou tanta seca, vale a pena?

Mais que passou da hora de pensar nisso também quando não estamos sob um evento climático extremo. Aproveitemos por agora, porque logo mais esses períodos serão cada vez mais curtos e cobrarão um preço cada vez mais alto. Não há dinheiro que chegue – ou que valha a pena.

A cidade com eme no céu

*Crônica feita originalmente na disciplina Laboratório de Narrativas Urbanas, do Propur/UFRGS, e publicada na revista Parêntese.

Começou lentamente, mas, pouco a pouco, ele foi se espalhando pelos céus da cidade. Um eme. Em azul e amarelo, foi dominando certas paisagens daquele lugar que leva alegria até no nome.

Colocado bem acima do verde até outrora mais presente no horizonte da cidade, o eme adentrou de ruas de bairro a avenidas famosas. Basta olhar adiante e, pá!, eis que surge aquele símbolo áureo-cerúleo.

Sob as três perninhas desse eme, soterraram-se décadas de histórias e resquícios do que um dia fora aquele lugar – que hoje até está diminuindo, mas já foi, e ainda é, porto de muita gente.

Ainda assim, para alguns o eme é o eme de modernidade. Quem não iria gostar de altas torres de vidro no lugar de prédios velhos? Quem não gosta de alto padrão a perder de vista?

E ainda com marca assinada, garantindo um status lá no céu, para todos verem. Um eme. Em azul e amarelo, claro.

Mas não para por aí. Numa época de parceirizações, por que não levar o eme da moda a ainda mais lugares? Com luzes nas árvores das ruas, com atrações com nomes in English. Um shopping com eme no teto, um parque com o eme no chão.

E tudo meio assim. Uma cidade com eme, de mescla: agora tudo é privado, mas meio público. Tudo é meio público, mas também privado. Confuso? Na dúvida, olhe para cima. Vai ter um eme lá, lembrando onde você está.

Sobre abraços e sociedade

Tem na minha carreira como jornalista dois abraços que considero inesquecíveis. Eles são separados por cinco anos, ocorreram em redações e momentos completamente diferentes. Mas, dei-me conta nesta semana, têm algo em comum.

O primeiro deles foi numa noite fria de junho de 2017, no Correio do Povo. Era véspera de um feriadão às portas do início do inverno. Corriqueiro pr’aquela noite talvez fosse termos atualizações de movimento de estrada, coisas assim. Só que não foi o caso.

No início da noite, a Brigada Militar cumpriu ordem judicial para a desocupação de um prédio no Centro de Porto Alegre – o qual, ao menos até pouco tempo atrás, seguia vazio. Foram cerca de 200 pessoas de 70 famílias, que lá estavam havia mais de ano, colocadas para fora. À noite, em véspera de feriadão e no frio crianças testemunharam a brutalidade da força do Estado no cumprimento de uma decisão judicial.

Foram horas tensas, com sirenes, incertezas e violência até que tudo enfim fosse apaziguado à força. Escalada para cobrir pelo jornal, eu lembro como a repórter, ainda jovem, voltou para a redação do CP: olhos esbugalhados, falando sem parar, assustada. Um tanto dela queria passar mais informações, um tanto queria desabafar, porque o jornalismo é, ao fim, uma ciência humana.

Eu já era editor, mas a única coisa que lembrei de oferecer na hora para ela foi um abraço, prontamente recebido depois de ter testemunhado tudo aquilo a poucas quadras do jornal. Ela precisava de alguns segundos de calma. Certamente eu também.

O outro abraço que não vou esquecer foi na minha colega do Matinal, minutos após a vitória de Lula nas eleições 2022. Um abraço com olhos marejados, emocionado, como quem começa a acordar de um pesadelo que foi (ainda é, em tese) o governo Bolsonaro. Um abraço de esperança em meio a tempos sombrios em tantas áreas sociais.

O fio que liga essas duas cenas passa pela atuação da polícia militar. A mesma corporação que protagonizou cenas fortes em 2017 é a que pediu gentilmente – e descaradamente foi ignorada – a manifestantes cuja pauta golpista e antidemocrática sequer é escondida sair do lugar em que estavam.

A questão não é defender o emprego da violência ou de uma mera conivência. Mas, entre esses dois abraços, eu fico me perguntando o porquê de agir de formas tão diferentes. E, nesta reflexão, eu não posso ignorar contra quem eram os mandados, que cor tinham os manifestantes em questão nos dois eventos.

Situações como essas escancaram que ainda temos um longo caminho enquanto sociedade para trilhar, um racismo estrutural para combater e uma cidade mais justa para construir. Que nos dê mais motivos para abraços esperançosos do que de abraços de consolo. Não vai ser com ares de injustiça ou movimentos antidemocráticos que chegaremos à ela.

Brasil de 2022

Recolhe e confere as poucas coisas que chegaram doadas e alheias até si. São uns pacotes de macarrão, um que outro quilo de arroz. Roupas velhas e algumas fraldas aleatórias preenchem a sacola de provisão que auxiliará ao menos nas próximas horas a família periférica.

O Brasil da pandemia, além de ameaçá-la com o vírus, também provocou a volta da fome, enquanto tantos se polarizavam num inócuo debate entre vida e economia. Diante da escassez de saídas, o jeito foi se aprumar na esquina e torcer pela bondade de motorista alheio.

Acontece que até ali já apareceu concorrência. Se não na mesma esquina, nas próximas e nas próximas. Há muitos e muitos pedindo algo por aí. Teriam histórias tristes pra contar, sobre como foram parar nesta situação. Foi em algum momento dos últimos dois anos que a corda arrebentou de vez.

Contariam. Mas não dá tempo, a sinaleira é rápida e só permite o apelo em questão de segundos. Então vai só o resumo rabiscado num cartaz, que invariavelmente tem códigos similares como FOME, AJUDA. Em letras garrafais como a urgência exige.

Teriam histórias pra contar, mas parece que nos últimos meses têm se mesclado às paisagens, às margens das ruas. Com uma inflação dessas é normal passar fome, pelo jeito. A comoção talvez tenha diminuído e em época de farinha pouca, meu pirão primeiro.

O Brasil da retomada (?) da pandemia – que talvez esteja rumando para o abismo enquanto grita – já nem os nota. Tem pressa.

E por essa pressa é bom não ficar muito tempo parado. A sinaleira fechou, chegou a hora. Cada um por si. Enquanto na outra esquina a criança corre para pendurar torrones nos retrovisores, uma mãe suspira na rua ao lado do hipermercado, faz um sinal da cruz e levanta o cartaz pedindo o seu socorro.

O cais fechado da cidade que tem nome de porto

O Cais Mauá, vazio | Foto: Maria Ana Krack/PMPA

Eu escolhi jornalismo por convicção. E não às vésperas do vestibular, foi antes. Faz tempo, mas não me arrependo. Só que pra não dizer que nunca olhei para o lado, em algumas raras vezes tive vontade de cursar outros caminhos, alguns longe da rotina das letras. Um deles foi a química, motivado por um namoro interessante que tive com a química orgânica, durante o segundo ano do antigo segundo grau. Mas foi só voltar a estequiometria que as nossas relações ficaram distantes.

Outro, em algum momento que não recordo bem, foi com a arquitetura, porém sempre mais perto do urbanismo – algo que só fui notar mesmo mais recentemente, mais adulto e, especialmente, aprendendo a me mover por cidades em ônibus, trens ou bicicletas. Hoje, mobilidade urbana é algo que especialmente mexe comigo, pessoal e profissionalmente.

Assim como também o bom uso de espaços. Principalmente dos que estão tão à nossa cara e acabam tão desgastados com o cotidiano que mal o valorizamos. No caso minha cidade, um desses é o Cais Mauá. Ironicamente, minha cidade ainda tem Porto em seu nome e por anos viveu de costas para suas águas. Algo que até Amyr Klink criticou em uma palestra um tempo atrás.

De alguns anos para cá, esse reencontro vem acontecendo, através de revitalizações na orla. Foram um sucesso tão grande e é tão popular, tão porto-alegrense, que certamente as novas orlas são os lugares favoritos de considerável parte dos moradores da cidade.

E aposto que, ali ao lado, o Cais Mauá também o seria – como já foi, até fechar, há pouco mais de dez anos. Sim, piscamos e passou uma década que um dos cartões postais mais famosos da capital gaúcha tem cercas e guardas impedindo a entrada. Ao longo desse tempo, propostas, projetos de revitalizações – alguns querendo descaracterizar o local – surgiram e naufragaram.

Estão por apresentar mais um em breve. Mas o que será? E para quem servirá? Vai um tempo, abriu-se ali perto o Cais Embarcadero, na ponta do cais, onde ficava, por coincidência, o prédio do meu primeiro estágio em jornalismo – estrutura essa que foi demolida há algum tempo. Criou-se ali uma vilinha classe AA, onde tudo o que é consumível é ainda mais caro do que já está, mesmo com a inflação nas alturas.

Leigo, pergunto: precisa gentrificar para se revitalizar? Gente que entende bem mais do assunto do que eu apresentou nesta semana uma proposta de reocupação do cais. E isso sem a necessidade de se meter um shopping no local por onde a cidade teve início, sem precisar colocar um restaurante cujo prato do cardápio passe dos 15% do salário mínimo.

A ideia seria transformar o cais num polo de cultura, fazendo do cais – hoje fechado – um local de circulação de gentes, ritmos e diversões. Em armazéns históricos, com vista privilegiada, retomando uma área ainda um tanto degradada do centro.

Contei mais nesta matéria, que informa também que que quem deveria ler essa proposta com atenção, não o fez. Devem ter outros planos. Espero que esses sejam bem mais plurais.

Daqui em diante

Uma nova redação: em casa, com café e água para a filha

Deixar 12 anos de uma grande redação estadual pra trás não foi uma decisão fácil. Mas ela foi sendo construída gradualmente a partir dos fins de 2018. Naquelas semanas, eu, Filipe Speck e Paulo Antunes, entre muitos e muitos cafés, sentamos para construir algo. Dali saiu o que hoje é o Matinal Jornalismo, que apareceu oficialmente para o mundo em março de 2019.

Sair do Correio para o Matinal não foi uma simples troca de redação, mas uma mudança de proposta e perspectiva. E aqui friso que o novo não buscar busca necessariamente ser melhor que o anterior, e sim distinto: em cobertura, em pautas, em formas de se chegar ao leitor.

O ambiente jornalístico do Brasil está poluído e ruidoso há tempos. Nunca se leu e se publicou tantas notícias para se compreender tão pouco. Existe, portanto, uma falha em algum ponto, seja do jornalismo, seja no receptor, seja no meio. Acredito que essa poluição venha, principalmente, do excesso.

Daí a necessidade de ser diferente. De forma objetiva, contextual e localizada, o Matinal se propõe a falar sobre Porto Alegre, a discutir a Capital e visa dar voz e ser participante de mudanças para tornar a cidade um lugar melhor. Sem inventar a roda, porém ocupando um espaço que se percebeu vago.

Jornalisticamente, há bastante trabalho pela frente para nos livrarmos desse ambiente poluído. Apenas culpar as redes sociais pode não ser o suficiente para escapar dessa crise, que passa, ao meu ver, por educação midiática desde cedo.

Também é preciso defender o jornalismo profissional, só que isso vai ocorrer em um contexto de se passar a cobrar por algo que o leitor se acostumou a receber de graça – em timelines, por mensagens ou e-mails. Há, porém, uma forte crise financeira, que atrapalha ainda mais esse processo. Faz-se, ainda mais necessário, ser relevante no dia a dia.

O caminho não é fácil, tem vários percalços. A estrada é longa e há de ser trilhada. Espero contar contigo, caro(a) leitor.

Porto de Bons e Alegres Ares

Cais Mauá. Foto: Maria Ana Krack/PMPA

De cais a cais navego entre os tempos desses lugares nem tão próximos, e ainda assim tão juntos – e meus.

Caminho nas cidades através das viagens que já se foram, mas também nas que virão. Porque sempre há um destino nesses meridianos que as minhas latitudes encontram.

E param. E ficam.

Reconheço-me entre o mate e o chimarrão. Ando de Palermo ao Mont’Serrat. Desde a Bombonera ao Beira-Rio. Da feria de San Telmo ao Brique da Redenção.

Enxergo um Laçador em plena 9 de Julio ao passo que me deparo com o Obelisco no Parcão. E como se o Rio da Prata desse na Andradas, eu sigo. Eu flano.

Venho. E sempre volto. (para as minhas cidades)

Caminho por tantas ruas que me encontro ao longo dos anos. Andei jovem ali, voltei adulto aqui. Ainda seguirei quando estiver tão velho quanto o eco do tango de Gardel no Odeon.

De Porto al puerto. Respirando desses ares. Alegre.

Recuerdo desde Puerto Madero | 2008

Esse texto foi o “trabalho final” para o curso de extensão Cartografia das Cidades, da PUC-RJ. A meta era criar uma paisagem, por meio de fotos, textos, colagens. Ou versos (e recordações, por que não?).

Clandestino na própria cidade

Foi como começar de novo. E, num ato banal que hoje me exige uma dose de coragem, suspirei e decidi seguir em frente. A cena que outrora foi tão corriqueira até ganhou um contexto levemente épico. Coloquei o capacete, subi na bicicleta. Apertei o botão: abri o portão e me fui cidade afora.

A paisagem que era tão comum ganhou o que pareciam contornos novos. E, como se reconhecesse a um amigo, passei a procurar detalhes rua a rua a partir do bairro Auxiliadora num caminho sem destino pelo cenário que por anos foi somente parte do trajeto casa-trabalho-casa.

Na via mais esvaziada gente, agora há mais traços. Do que se foi e do que será. Detalhes de como andou a vida nesses meses atípicos de medo do invisível. Sinais das transformações que virão daqui para frente. As casas têm mais gente agora, enquanto as ruas, mais pedidos por ajuda, no que parece ser uma faceta desses novos tempos.

Porto Alegre é uma cidade que tem um coração verde. Chama-se Parque da Redenção. É para lá que confluem as diferentes faunas de gentes da capital gaúcha. Seus cantos e bancos, se falassem, teriam o cotidiano das ruas na ponta de suas línguas. Estar lá é, afinal, estar em Porto Alegre.

Muitas e muitas vezes já sentei em qualquer banco ali, em variados momentos e com tantos e tantos tipos de companhia. Agora, contudo, estava só e clandestino, mesmo em plena tarde agradável de sol. Em tempos de regras de isolamento, talvez o certo seria não estar ali. Quieto, observo o vem e o vai daqueles poucos que, como eu, circulavam em tempos pandêmicos.

Olhando ao redor, tentava reconhecer a alma daquele lugar que frequento desde criança. Sob a sombra das árvores, notei apenas que não haverá nada normal enquanto a Redenção estiver esvaziada em tarde de sol por conta de algo que, dia após dia, nubla ou apaga a tantos nas redondezas. Tem, sem dúvida, um clima um estranho no ar.

Retomei o caminho de volta prestando atenção às novas mensagens de muros, as que deixei de notar nos últimos meses – no último ano (!). O que será que eles poderiam contar depois de meses sem vê-los? Em meio a tapumes, havia protestos: “Bolsocaro”, diziam uns cartazes na avenida, enquanto em outro muro, o picho exclamava, em plena perimetral: “O Brasil não merece o Brasil”.

Parei por um minuto. Achei que ele tinha razão.

*Crônica feita para a aula do curso de extensão Cartografias da Cidade, da PUC-Rio

A saudade dos detalhes

Postei essa foto pouco mais de um ano, quando a pandemia já era realidade, mas em um momento imediatamente anterior à adoção generalizada das políticas de isolamento. Havia uma sinalização de que seriam duas semanas de restrições, talvez um pouco mais, em que pararíamos, pra depois, aos poucos, retomarmos a vida.

Como se sabe, a previsão foi errada, tragicamente errada.

“Tudo pode ter um lado bom” e “Dias bons estão por vir” são mensagens tão esperançosas que soam até ingênuas em épocas atuais. Porém cabe a nós acreditar, ainda que seja difícil, ainda que seja distante.

Ao longo desse tempo, cresceu a saudade de encontrar mensagens como essa e outras tantas andando pela minha cidade – a qual redescobri quando passei a desbravá-la de bicicleta, nos idos de 2019.

Poucos dias atrás, descobri que gosto na verdade de “derivar” pelas cidades, as outras e a minha. E esse acabou sendo o gancho para a minha crônica de estreia na Revista Parêntese, disponível aqui para assinantes da Matinal. Eu tenho saudade de reconhecer seus contornos e suas fachadas, de ler suas mensagens tão escancaradamente escondidas nos muros por aí.

Espero, com saúde, poder revê-la a pleno em breve. É o meu desejo para este teu aniversário, Porto Alegre. Cuidemo-nos!

Matinal, ano 2

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Talvez o fato de ter o radical “jornal” no nome da nossa profissão de “jornalista” nos cause certo conservadorismo. Não necessariamente no campo político, e sim nas práticas com o nosso ofício, além de uma certa dificuldade com o que é novo. Um apego.

Porque jornal sempre vai ser aquele emaranhado de papéis e letrinhas que estava à nossa mesa no café da manhã. E o jornalista ainda é visto como aquele ser que fica até altas horas numa redação. Quiçá ainda carrega fama de boêmio, literato ou as duas coisas. Além, claro, de sempre ter uma tia para perguntar quando irá vê-lo no Jornal Nacional.

Bem, os tempos mudaram.

Já está alcançando a maioridade a primeira geração que nunca precisou de uma conexão discada para acessar a internet – e, consequentemente, ver, ouvir e ler alguma coisa pela web. Redes sociais são verdadeiros centros de informação de última hora há anos. E o 5G está batendo a porta.

Mesmo assim, nesse contexto todo, insisto: quando falamos em jornal, imaginamos aquele velho emaranhado de papel (quando já nem tomamos café da manhã com calma).

De repente, essa dificuldade em se despender desse meio físico e limitado complique um pouco a visão empreendedora do jornalismo. Em um país de mais de 200 milhões de habitantes, ainda são raros os sites jornalísticos nativos do ambiente digital. O que dirá outros formatos.

Isso, é claro, trata-se de uma generalização. Há tentativas de escapar da bolha, de romper o meio mais tradicional do jornalismo para, assim, realizar a missão nossa de bem informar. Nisso, muito me orgulho de fazer parte de uma tentativa até aqui bem sucedida: o Matinal Jornalismo, que completou um ano de atividades nesta semana. E está em expansão.

A newsletter começou basicamente como um resumo informativo de notícias de Porto Alegre e Rio Grande do Sul, buscando aquilo que hoje é precioso neste tempo ágil nesta época de jornalismo declaratório ultraveloz: contexto. Nosso objetivo sempre foi que o leitor do Matinal se informasse bem daquele assunto que a gente escolhia repercutir – e aqui entra outro pequeno tesouro desses tempos internéticos, a curadoria.

Mas é só um e-mail? Sim. Com um trabalhão por trás que, ainda que tenha 11 anos de carreira, me fez sentir a satisfação de se fechar uma edição – momento sempre tão celebrado por editores de jornais mundo afora e que eu, um jornalista de web, mal conhecia, pois a minha parte é estar permanentemente conectado.

Ao longo de um ano e quase 250 edições editadas, fechadas e enviadas, considero o Matinal um sucesso. Crescemos, ganhamos e fidelizamos leitores, estamos fixando nosso espaço na rotina de muita gente – que, imagino eu, acordava e mergulhava em redes sociais em busca de notícias locais. Aqui eles encontraram essa demanda.

Construímos pontes, também. E o que era uma newsletter informativa hoje é um Grupo de Comunicação, com três veículos diferentes, a própria news, a Revista Parêntese e a newsletter do Roger Lerina, com a programação e notícias culturais de Porto Alegre. Se três pessoas representavam o Matinal um ano atrás, hoje somos 15.

Claro, temos grandes desafios pela frente. Aos poucos, iniciamos o processo de rentabilização do nosso trabalho, tarefa extremamente complicada quando se trata de jornalismo. As pessoas ainda não se acostumaram a pagar por notícias, tendência que, quero não estar errado, vejo que está mudando paulatinamente. Ainda tem uma série de ajustes, que percebemos ou não, estamos fazendo. Tentando crescer. E tudo isso por e-mail.

Se vai dar certo? Espero que sim. Fato é que, em uma internet muito volátil – um tempo atrás ouvi que o e-mail tinha acabado, seria tudo via Facebook (!) –, creio que furamos uma bolha. Vencemos o primeiro ano, e queremos muitos pela frente. Trabalhamos para isso. Um brinde, então! Que venha o ano 2.