Duelo com gigantes

Grito, choro. E um chamado agônico em meio ao breu de alta madrugada o fez encarar a noite e tatear até onde ela estava.

Ao chegar, ouviu a causa de tanto temor: “Gigantes, gigantes”. Numa situação como aquela, pouca gente poderia lidar com tal problema.

Mas há cura para todo mal, e coragem a todo temor. “Calma, eu estou aqui”, sussurou à ela, que nem precisou abrir os olhos para notar a presença dele.

Acalmou-se.

Não tardou para temor, medo e gigantes irem embora, ainda que com algum espasmo de susto. “Foi só um sonho”, ao fim ela revelou.

Com a situação mais tranquila, pensou em retornar, porém ela não deixou. Com reflexos que só as filhas têm, agarrou-o firm e disse, sinceramente, entre o sono e a sinceridade: “Papai, eu te amo. Muito”.

E se o hexa viesse com elas?

Era uma volta de creche qualquer em que escutávamos a “música do macaco triste” – não é esse o nome, mas chamamos assim porque no filme “A Jornada de Vivo”, ela surge quando Andrés, o tutor do Vivo, morre. Eis então que me vem uma simples e difícil pergunta para se responder às 19h30 de uma segunda-feira:

– Por que ele morre, papai?

Neurônios a mil e naquele espaço de tempo de meio segundo precisava formar uma resposta minimamente aceitável para satisfazer a curiosidade daquele ser de quatro anos no banco de trás. Tergiversei. Respondi com qualquer evasiva, cujo objetivo maior era trocar o assunto o quanto antes. Consegui com sucesso.

Acho que ainda tenho certo controle sobre o que posso ensinar agora e o que posso deixar para falar depois com a Maria Flor. Morte e por que ou como as pessoas morrem – ainda que ela já saiba que isso acontece – foi um assunto que preferi deixar para daqui a pouco, com um mínimo a mais de maturidade.

Há, porém, pontos que prefiro não ensinar. E deixar como está. Por exemplo, quando estamos na garagem ou passeando, ela me convida: “Vamos juntas”. A norma culta do português que me perdoe, mas vou deixar minha filha, uma menina do século XXI, flexionar o quanto quiser o gênero quando for me chamar para algo.

Entre tantas lições a serem vivenciadas, igualdade de gênero é uma que espero que minha filha não só aprenda, como desfrute. Mais do que as princesas oitentistas da Disney, que ela tanto gosta, puderam aproveitar em seus enredos em torno de príncipes.

E vendo – e revendo e revendo – filmes como esses, que mal ou nem podem ser chamados de velhos, ainda que um tanto antiquados, noto o quanto a sociedade evoluiu nesta pauta. Muito dos roteiros aprovados naquela época sequer seriam considerados hoje em dia. Porém, é importante não fazer vista grossa e ter consciência de que o caminho ainda é longo.

Horas antes daquela pergunta sobre morte, teve jogo do Brasil na Copa. Admito que nem vimos, um tanto pelo fuso-horário, um tanto por, de fato, não termos nos contagiado com o clima de Copa no feminino tanto quanto no masculino – quando a Flor ganhou até uma camiseta amarela.

Mas isso pode mudar. E, mais, se além de mudar. Se essa virada que o país deu no último ano chegar a campo e, por ventura, o esperado hexa vir em 2023, pelos pés das gurias? Já estaríamos preparados para inserir a sexta estrela sobre o escudo da CBF sem pestanejar?

Eu não sei a resposta. Mas torceria para que a Seleção da minha filha optasse que sim.

Em tempo: após escrever este texto e procurar foto do jogo do Brasil na Copa que notei que, desta vez, a equipe feminina não faz uso das estrelas conquistadas pelo time masculino. Até a última Copa, as lembranças de conquistas do Brasil estavam lá.

Carrossel

Onde o tempo mora?
O tempo não mora, ele passa.
Passa, mas ora volta; passa e oras… se vai!
Às vezes é um carrossel, noutras, um foguete rápidorápidorápido.

Onde está a nenê que até um par de horas só queria colo? (correndo)
De quem é a face desta mulher no rosto da minha criança? (é dela!)
Ter filho é envelhecer e rejuvenescer quase ao mesmo tempo. (quase todos os dias)
É um seguir, mas voltar, constante. Como ser já meio calvo e andar num carrossel. (ao teu lado)

Escrevo isso, porque dias atrás vi de relance o teu rosto do futuro, minha filha.
Não era o teu rosto de hoje, assim como tu, hoje, já não és a mesma de ontem.

O tempo não mora, pois. Ele passa.
Às vezes é um foguete, noutras um carrossel.

A bici

É um trabalho de formiguinha, em que quase cada ação individual conta, ainda que não seja notada. Assim que procuro trabalhar algumas questões ambientais com a Maria Flor, que do alto de seus dois anos e meio de vida, começa a compreender o que pode e o que não pode ao seu redor. A pauta, que se já tem um tom de urgência hoje, será muito mais presente quando a geração dela chegar à idade adulta.

Nisso, há algum tempo, reduzimos o deslocamento de carro entre a casa e a escolinha. Ao mesmo tempo que reparamos nos detalhes do caminho e da cidade, ela internaliza que o carro pode não ser tão imprescindível para nós como pareceu em outros tempos. Afinal, dá até pra ir à pracinha de bike. (Além de que andar de bici com o papai é legal!)

Dia desses, porém, chegou a hora de ir buscá-la e uma pequena crise de sinusite em mim insistiu em não passar. Até por segurança, optei pelo carro. Chegando lá, como sempre, ela corre, me abraça, mas estranha algo. E então pergunta: “Cadê bici?”

Pode parece pouco, mas para um pai é gratificante ver que algumas boas lições se consegue passar adiante. Que venham as próximas, o mundo espera bastante da gente, Flor.

Das amizades

O ano devia ser 1988. E uma jovem mãe decidiu arriscar. Quebrou protocolos de intimidade e foi falar com aquela mulher que, mesmo sendo uma vizinha de rua havia anos, sequer poderia chamá-la de amiga. No máximo conhecida, e olhe lá.

E mesmo sem ter qualquer traço de intimidade, convidou-a para um dos eventos mais especiais que preparara até então: o aniversário do seu único filho. Um guri que era meses mais jovem que o primogênito da vizinha. Por coincidência, ambos têm o mesmo nome: Tiago.

Mal sabia ela, mas daquele ato ela fez nascer uma grande amizade, que atravessa décadas. Aqueles dois jogaram bola juntos, foram às mesmas festas na adolescência, viajaram, se ajudaram em boas e ruins e mesmo que hoje a vida insista em jogá-los em lados opostos, se veem e confraternizam como bons e velhos amigos que são

Passadas três décadas, aquele dia em que tudo começou serviu de inspiração para o outro Tiago, que vem a ser eu. Num contexto completamente oposto ao original, de necessidade de isolamento social, de medo e cuidados. Mas com uma criança de menos de dois anos que, a despeito disso tudo, precisa também interagir com outras pequenas da sua idade.

Naqueles dias, normal era não ver criança alguma na única e furtiva caminhada diária na rua. Até que surgiu Elis – e Paula, sua mãe. As duas pequenas já tinham se encontrado rapidamente tempos antes. Reconheceram-se ao se reverem, como amigas que viriam a ser. E como é bom ter uma amiga nesses dias (ainda que as duas nem tenham a real ideia da tensão que paira no ar).

Mas e a hora de ir embora sem a certeza de não se ver? Aí que a lembrança da mãe do Tiago apareceu. Em uma época de tanto perfil fechado, pedi um telefone, um ato quase ousado entre estranhos. Desse contato, fortaleceu-se uma pequena grande amizade, de muita brincadeiras e sorrisos nesses cinzas dias pandêmicos.

Hoje, seis meses depois daquele reencontro ao acaso na rua, Elis e Paula se mudam para longe. A vida, além de grandes amizades, também reserva muitos ciclos, afinal. Elas, porém, levam na bagagem boas memórias e uma amizade que tem tudo para durar independente de CEP, além da promessa de reencontro em dias mais ensolarados.

O sonho do Rodrigo

O sonho do Rodrigo era engravidar. Literalmente. Até dizem as más línguas que quem ele queria que realizasse esse desejo seria um certo chef francês, mas isso é outra história. Fato é que, ébrio ou não, ele não escondia: o sonho do Rodrigo era engravidar.

Rodrigo sempre foi desses caras que sabe das coisas. Apesar de não ter filhos, como poucos ele metamorfoseia-se de amigo a pai, filho, tio, irmão e, por que não?, mãe. Pessoas assim são raras, porém, reconheçamos, encarnar essa última personagem é ainda mais difícil, pois não há vínculo maior que o da mãe.

E acho que isso explica o sonho dele. Imagino eu que a ideia de ser mãe é para ele ter um canal que enfim dê vazão sem precisar disfarçar a todo aquele companheirismo, cuidado e amor que só um espírito superior, como é o caso do Rodrigo, tem. Coisas da vida.

Lembrei disso madrugada dessas, quando o silêncio da casa havia sido bruscamente rompido por um choro da Maria Flor. Um choro desses de assustar e dar dó. Foi questão de segundos até eu, um pai presente e tal, chegar ao quarto dela e oferecer o braço do conforto e da garantia que tudo vai ficar bem.

No que, sem abrir os olhos e nem parar completamente de chorar, ela murmurou como quem pergunta, exclama e torce ao mesmo tempo: “Mamãe?!”. Fiquei feliz por estar escuro nesta hora para que ela não visse a cara que devo ter feito em reação.

Mas tudo bem, com o tempo, coube a mim se acostumar, porque, mesmo com todo o meu currículo de idas à pracinha, de chocolates contrabandeados, já entendi que nada supera o vínculo original. Por mais que eu tente concorrer, sou só o pai, aquele que ela reconhece depois.

E aí eu lembro das conversas do Rodrigo. O Rodrigo sonha certo.

A praça, a vida e os desafios

Uma pracinha às vezes tem tantos desafios quanto a vida

Para um segundo, se achar preciso. Isso é o receio, que nada mais é que uma das tantas formas do medo. A gente necessita um pouco disso, mas não ao ponto de nos paralisar.

Respira. Vai. Isso é a coragem, o que nos faz encarar (superar ou não é outra coisa) os desafios nem sempre previstos que sempre surgem à nossa frente, não importa aonde estejamos.

Segura firme. Procura aquilo que te dá segurança para o próximo passo. Se não houver um apoio físico, busca cultivar uma mão amiga pra te ajudar a seguir nesses momentos. (e às vezes é essa mão que nos carrega)

Por fim, se não souber o que oferecer a um desconhecido, quem sabe dê-lhe um abraço. Alguns não irão merecê-lo, e os tempos hoje são esquisitos, mas sempre é bom cultivar empatia por aí.

Avisos do destino ou não, parece até uma receita pra vida, mas foi só a observação das aventuras de uma menina que estava prestes a completar dois anos numa ida à pracinha depois de muito tempo e com outras crianças ao redor.

Feliz aniversário, minha filha! (a mão amiga do pai sempre estará ao teu alcance)

Verões e avós

Dizem as memórias dos meus pais que com dez dias de vida eu fiz minha primeira viagem. Para a praia. Para a casa dos meus avós, no meu primeiro janeiro. Não sei quanto tempo fiquei no Quebra-Mar naquela vez. Sei sim que muitas outras vezes retornei nos anos seguintes.

Quando a gente é criança e não tem noção ainda dos privilégios que temos, como poder transformar o verão em uma estação mágica. Por motivos de praia e avós. É um tempo de vida que, sem ter a exata dimensão, quebramos rotinas e aprofundamos laços. Seja aprendendo a valorizar as férias do colégio, seja ganhando mimos que só avós proporcionam – às vezes furtivamente.

No meu imaginário infantil, verão e avós estavam sempre, sempre ligados. Era uma espécie de rotina que se seguiu desde aquele pioneiro janeiro até a época em que eu estava entrando na faculdade, quando até já podia dirigir o carro do vô. Claro, nem sempre foram meses, às vezes foram semanas ou mesmo dias de convívio próximo naquele apartamento apertado. Suficientes, contudo, para criar e aprofundar memórias.

Memórias, essas, que com o passar dos anos foram ficando para trás, tal como as cenas daquela praia antiga, aquela sem grades entre as casas. E que eu pensei que a Maria Flor não iria conhecer nada disso.

Se se ambientar em uma praia sem divisões vai ser impossível, ao menos eu errei a previsão quanto à permanência e, ainda bem, aos avós. Num tempo cada vez mais corrido, nesse meio de fevereiro, Maria Flor completa um mês perto do mar. Um mês correndo pela grama, catando conchinhas na areia e descobrindo coisas que na cidade ela não costuma ver. Ao lado dos pais, de uma avó e uma bisavó – uma privilegiada e tanto, essa menina.

Em pleno verão pandêmico e sem carnaval, minha filha descobriu que não só com amigos que a gente constrói relações. E como é bom ficar semanas a fio sem aulas, na praia e com avós. Que não faltem mais lembranças dessas por vir.

2020 e AmarElo

Disse algumas vezes que o álbum AmarElo me ajudou a atravessar o nervoso mar de 2020. Em alguns dos muitos momentos mais tensos desse ano turbulento, me apeguei à letra e aos sons das músicas do Emicida. Mas, pensando cá, onde exatamente que AmarElo me ajudou? Foi na positividade. E fez de melodias o polo oposto do noticiário que estive (e estou) imerso, cheio das âncoras pesadas da dura realidade. AmarElo me foi ar na hora do sufoco.

Impossível não reagir ao ouvir repetidas vezes que “tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem, é nóis” enquanto minha filha crescia, mesmo ela ficando mais tempo em casa, mesmo tendo que abrir mão de umas brincadeiras tão salutares na primeira infância. Ou então escutar “cale o cansaço, refaça o laço, ofereça um abraço quente” depois de dias tempestuosos. – e que não foram poucos

Muitos dos versos desse trabalho tiveram e seguem tendo em mim um verdadeiro efeito terapêutico. E não precisam ser rebuscados ou com lições de moral. Eu os considero de uma simplicidade linda e tocante.

Talvez o meu inconsciente queira que eu retribua isso em 2021. Não através de composições, mas por positividades. Dei-me conta ao reparar que ao fim deste primeiro mês do ano, distribuí ao menos dois elogios gratuitos a pessoas de fora do meu círculo, as quais certamente nem lembram de mim corriqueiramente.

Tive o trabalho de entrar em contato e falar uma coisa boa, sem esperar nada em troca. Parece pouco, porém sabemos que é tão raro, isso de não deixar para depois. Da mesma forma que disse palavras de carinho sincero a velhas amigas que estão com pequenos rebentos em casa.

Passei algo bom, de maneira inesperada para elas. Fiz sorrir, sorri de volta. Numa época tão complicada, gestos simples podem ser lindos e tocantes. Se é influência de AmarElo ou até uma meta para 2021, não sei. Mas gosto deste verso: “Seja luz nesse dia cinzento”.

A grande e imperceptível mudança

Em 2020, fiz mais amigos andando de unicórnio do que no bar

Foi ela nascer que despertou em mim uma urgência de tentar deixar as coisas melhores por aqui. Arrumar essa bagunça que se armou antes dela vir ao mundo. Sei que todo meu esforço que será pouco, desprezível, mas, ainda assim, encarei a empreitada. Optei por pedalar ao invés de dirigir, comer um pouco menos de carne, buscar mais sustentabilidade à nossa rotina. Mudanças até simples, porém marcantes.

Todo meu esforço, sei, não vai mudar nada. Estamos diante de um problema ambiental gravíssimo, que só poderá ter qualquer chance de reversão com um esforço coletivo. Mas eu botei uma filha no mundo e o mínimo que eu preciso é tentar deixar esse lugar um pouco melhor pra ela. Ou, pelo menos, tentar passar um exemplo.

Ao longo desse ano e meio, mudei em bastante coisa, acho. Sempre com esse Norte: um mundo melhor para Maria Flor. Nesse período, também notei, já percebo a minha própria relação com o mundo um pouco mais amigável. Isso vem desde a troca de bênçãos no corredor do café do supermercado.

Se hoje o supermercado é uma tarefa solitária, esse clima me aparece pela rua. Toda manhã, caminhamos. Jamais cumprimentei tanta gente nas calçadas. A ponto de poder dizer que hoje faço mais amigos passeando de unicórnio do que no bom e velho bar. Isso por causa da minha filha que, alheia às aflições de hoje, insiste em sorrir – e agora tentar falar em seu idioma particular – com quem lhe dá atenção pelo caminho.

Talvez todo meu esforço seja em vão. Mas talvez eu é que não tenha compreendido a ordem certa dos fatores. Afinal, que pretensão, a minha, de tentar mudar as coisas para ela. Na verdade, e desde sempre, é ela quem muda o mundo pra mim. E pra melhor!