Uma fila do Brasil

Cedo da manhã, caras de sono se aglomeram ao lado de dois portões subsequentes em grande aeroporto de cidade interiorana. Os dois destinos eram para longe do mar, mais próximo do Brasil profundo.

Meu voo é para o Norte, Belém. Na fila, estereótipos distintos daqueles que se vê nessas mesmas filas de aeroportos quando os voos vão para o eixo do Sudeste ou às praias do Nordeste. Ali, em sua maioria e em que pese a lotação, não parecem ser turistas, e sim locais.

Mães com filhos pequenos, rostos com traços indígenas, trabalhadores, mas com fenótipo diferente ao massificado pela TV. E todos num mesmo voo rumo a uma distante metrópole brasileira distante do centro do país. Todos prestes a sobrevoar floresta mais uma vez.

Ao meu lado, uma mulher simpática vai visitar os pais depois de três anos, no interior do Pará, a quatro horas de viagem do segundo voo que ela pegará no dia. Crente em Jesus, ela agradece as fotos que fiz do rio abaixo com “glória a Deus” – Deus, aliás, lembrado por ela a cada fim de turbulência e, claro, ao fim do pouso.

Seria o mesmo Deus do padre sentado a duas fileiras dela? Por esses dias, já não sei. Padre esse sentado ao lado de um carioca típico de sorriso constante no rosto. Com pinta de músico, ele havia dançado sozinho na demorada fila para entrar no avião a despeito de certa impaciência alheia. Coisa de gente ensolarada.

Mais adiante, um tipo que poderia ser classificado como um branco descolonizado. Sua face, digamos, mais europeia-sulista, contrastava com a estampa de sua camisa, que trazia um enorme rosto indígena. Um estilo meio paz e amor totalmente diferente de outro sujeito, com botas de couro, fivela grande na cintura, um coldre servindo para levar o celular e um portentoso chapéu. Um homem sério, tentando exalar testosterona.

Todos, dentre muitos outros que mereciam registro, no mesmo avião, provavelmente a maioria com a mesma nacionalidade deste território continental do país que leva o nome de uma árvore. Um breve suco de Brasil real, esse que desafia a nossa compreensão constantemente.

Égua, que trem país, sô!

Da energia que não se vê, entre o sacro e o profano

Por certo existe muito mais coisa no Centro Histórico de Santiago de Compostela que história, fé, peregrinação e lojas de souvenires.

Há, também, muita vibração a partir daquilo que não se vê a olhos nus – e que faz a energia correr solta.

Arrepiei-me quando, à noite no hotel, imaginei como seria uma caminhada àquela hora nas ruas dali. Uma hora qualquer e escura, nas apertadas ruas centenárias daquele lugar, testemunhas de um sem fim de histórias de gente de todo o mundo…

…mas também de gente que por ali se criou e viveu, bem antes do conceito de turismo se aplicar ali. Se Santiago é conhecida por sua imponente basílica, a Galícia, a comunidade autônoma da qual faz parte, é uma terra também marcada por forte presença de bruxas, as “meigas”, no que constrói importante parte de sua mística e cultura popular.

Não são necessariamente más, até são conhecidas por suas habilidades mágicas e curativas. Porém são figuras femininas com poder – algo que, no geral, costuma a assustar detentores da força política. Ainda que hoje sejam celebradas, por certo séculos atrás, em plena inquisição, não eram bem vistas ou aceitas pelos vizinhos das igrejas.

Aí que reside todo o conflito invisível naquelas ruas de Santiago. Se a fé, ou algo que o valha, faz com que milhares de peregrinos atravessem a estradas para chegar até o local onde há diversas igrejas católicas, a crença no poder das meigas ainda se faz presente naquela região, anos e séculos após suas histórias ganharem fama.

Um capítulo a mais do embate entre o sacro e o profano mundo afora.

Santiago, as igrejas e a eternidade

Não foi caminhando ou de bicicleta. Muito menos peregrinando. Mas, certa feita – de carro – cheguei a Santiago de Compostela, ao fim de uma tarde de inverno, em que o tempo estava indeciso entre a chuva e o sol – o único elemento constante, sim, era o vento, que entre uma esquina ou outra, mostrava sua força.

Ao me hospedar perto na região central, fiquei a poucas quadras do que é mais interessante naquela cidade: o seu medieval Centro Histórico, onde as ruazinhas bem antigas dividem seu cenário com algumas lojas piscantes de capitalismo e tem seu chão apinhado de turistas de tudo o que é lugar.

O Centro Histórico, onde a cidade em si começou, mais de um milênio atrás, constitue-se num emaranhado de ruas, praças e igrejas – o que denota o tamanho da força e da onipresença do catolicismo (de seus padres, de seu rigor e sua punição) de séculos atrás.

Claro, a mais destacada e, digna de um adjetivo tal como “imponente”, é a Basílica de Santiago, destino final de um sem fim de peregrinos, esses sim que chegam à cidade caminhando ou pedalando, vindos de centenas de quilômetros de distância. À primeira, ela vista impressiona por sua robustez ante a paisagem.

Santiago, nesta região, conta com uma arquitetura antiga, duradoura e impressionante a leigos e a entendidos. Essa se destaca pelo tamanho, mas também pelos detalhes. Em pleno século XXI, oferece uma viagem a uma época medieval – em que pese o excesso de lojas que buscam algum vintém de turistas e peregrinos.

Se há lugares eternos, talvez a praça principal seja um deles. Foi de tirar o fôlego a contemplação – num momento premiado pela boa vontade do clima. Numa segunda visita, já sob forte chuva, se focasse a minha visão no choque entre a água e as pedras que ali estão há séculos, poderia me perguntar: afinal, em que época estou?

Coisa de lugares que são, enfim, eternos.

Certa feita, em Vigo

Uma vez na vida estive em Vigo. Cidade que me pareceu mui simpática, na Galícia, costa espanhola. Localizada entre um relevo proeminente e um mar de um azul profundo, Vigo é um daqueles lugar que se simpatiza à primeira ou à segunda vista.

Estive em Vigo de passagem. Seriam – e foram – poucas horas. Daqueles encontros rápidos e fugazes que temos na vida e em, especial, durante viagens. Daqueles em que o tchau é provavelmente um adeus. Mal deu tempo de tirar foto. Gosto dessas situações. São marcadores de vida.

Estive em Vigo uma vez na vida, de passagem. Mas Vigo mal me viu. E isso porque cheguei quase passando a hora do almoço. Cheguei para pegar a última mesa de um restaurante e, quando acabei a refeição e o postre, já era hora da siesta.

E como os hispânicos respeitam a siesta!

Em pleno centro, lojas fechadas. Não por meia hora, uma horinha. E sim até, pelo menos, 16h30, 17h. Por que a pressa se a vida é longa? Pra que viver uma tarde com sono se pode-se estar relaxado? É uma filosofia e tanto de vida. Sinceramente, admirei.

Simpatizei com Vigo, ainda que mal possa dizer que estive por lá. Mesmo nessas horas fechadas de cidade, achei as poucas ruazinhas do centro aprazíveis de uma caminhada. Vigo, em plena sesta, cavou uma lembrança e uma micro-história que agora eu posso contar.

Se nos veremos de novo? Só o futuro decidirá. Mesmo entre bocejos, gostei de Vigo.

Eduardo

Foi um puro acaso, desses que acontecem em viagens, que nos apresentou. Eduardo e nós – eu e meu pai – nos conhecemos em uma lavanderia no canto de uma praça no Porto. Um lugar sem atrativos quaisquer e não muito maior que cozinha de apartamento moderno, por onde se entra e se sai apenas por uma porta.

E é um atrapalhado, o Eduardo. Acionou o funcionamento da máquina, ao custo um tanto salgado de 5,50 euros, sem ter colocado suas roupas para dentro, o que obrigou-o a ver toda aquela água e sabão girando à toa por 27 minutos. Não com muito mais sorte, nós ao lado fizemos o procedimento certo, mas a máquina pifava.

Entre explicações com a dona do local – que demonstrou certa piedade do conterrâneo, permitindo-lhe que fizesse uma nova operação gratuitamente –, calhou-se, então, longos minutos de conversa. Português com um português enrolado, Eduardo gosta de falar, ainda que, imagino eu, provavelmente tenha alguma ideia de que não é sempre compreendido ao todo.

Entre suas histórias, percebeu-se, isso sim, é que o tempo fez mal a Eduardo. Tinha 60 anos neste fim de inverno de 2024, só que parecia um pouco mais, talvez bem mais. Sem saber exatamente como que chegara até ali, imaginei-o um tipo marinheiro aposentado, que talvez tenha ficado meio maluco quando viu-se em terra para sempre.

Conta, faceiro e com um quê de orgulho, que tem um irmão no Brasil. Onde? Não sabe. Em algum lugar do país, talvez próximo do Rio de Janeiro. Eduardo só não é morador de rua, porque vive num albergue, disponibilizado pelo governo português. Conforme frisou, só pode entrar até as 22h30, não tem drogas e tem assistência social.

Para sobreviver, além de pouso, recebe 500 euros, entre aposentadoria e auxílio estatal. O valor é um paradoxo para os interlocutores da vez. Enquanto é pouco, coisa de 60% do salário mínimo português, trata-se de um rendimento superior à média de 26 das 27 unidades federativas do Brasil e que, se não garante uma vida plenamente digna, poderia lhe oferecer um pouco mais de conforto em ares tropicais.

Eduardo, porém, provavelmente jamais fará ideia disso, vivendo seu dia a dia entre as ladeiras portuenses. Tem pouco, vive com pouco. E ainda assim oferece a sua amizade. Disse-lhe para ficar com Deus quando saí. Ele se despediu, então, com um sorriso sincero despontando entre uma barba mal feita e a prestatividade de que, se precisasse de qualquer coisa, estaria à disposição. Ali no albergue.

.

O triste (?) fim de um mercadinho

Chamava-se “Mercado Tropical”, e entrar nele tinha um quê de voltar à parte de uma infância que foi minha e de tantos outros com pelo menos 30 e poucos anos ou mais. Apesar do prenome, seu porte era mais para o diminutivo, mercadinho. Ou, talvez para ser mais exato, lembrava bem uma boa e velha venda. Em plena avenida!

Tinha pouco de quase tudo. Uns azeites do lado dos sacos de feijão, umas esponjas perto de alguns desodorantes. Coca-Cola (ou Pepsi?) numa geladeira e hortifrúti ali num canto. Alguma marca de cerveja, além de uma que outra fornada de pão por dia também eram garantidos. Tudo ficava bem perto, umas coisas das outras, num ambiente com aquele cheiro típico de mercadinho. Um quebra-galho para horas de apuros.

Já nesses tempos mais modernos, aceitava até cartão de crédito para clientes, mesmo os menos habituais como eu. Mas aposto: com um mínimo de intimidade, a moça ou o moço que estivessem no caixa (e que também atendiam na padaria e no açougue) puxariam o caderninho. “Bota na conta”, diria eu, se fosse freguês assíduo. Fim do mês ou perto do dia 5, a gente se acerta. E tudo bem.

Chamava-se Mercado Tropical, mas poderia ilustrar um sem fim de exemplos. Uma venda, armazém, bodega qualquer, dessas que tinham aos tantos nos miolos de bairros da infância de gente que tem pelo menos seus 30 e tantos nas cidades grandes – mas que, certamente, ainda insistem em sobreviver em cidades interioranas.

No caso do Mercado Tropical, a cidade era Xangri-Lá, essa que exibe sem constrangimento há alguns anos a alcunha de “capital dos condomínios” como se isso fosse alcunha digna de ser exibida. Uma cidade que se orgulha que seus moradores escondam suas casas dentro de perímetros de muros altos. Muros, aliás, que seguem se alastrando, desde o mar até a estrada para comportar seus novos habitantes, que chegaram às pencas desde que a covid resolveu aparecer.

Com tanta gente nova na área, sobrou, então, menos espaço para mercadinhos quaisquer. E quem chegou vem de carro e pode pagar por aproximação. Em que pese o vento constante do litoral gaúcho, não dispensa um forte ar-condicionado funcionando a pleno.

Assim, neste verão, qual não foi minha surpresa logo ao chegar na praia e não encontrar mais o Mercado Tropical, que havia anos estava no mesmo lugar. Ainda que já tivesse trocado de nome ao longo da última década, abandonando um mais familiar “Tio Freitas”, o conceito tinha se mantido. Agora, não.

O antigo Tropical tomou um banho fashionista, vestiu-se de preto, capinou até o terreno ao lado para colocar uma placa escrita “estacionamento”. Cresceu em sua fachada, onde soletrou: “Casa de Carnes Suprema”. E com direito ao desenho de um boi meio brabo, esse com dois chifres.

Jamais teria coragem de pedir pra anotar uma compra no caderninho num lugar desses. Tampouco encontraria variados produtos empilhados em parcas prateleiras. Agora, ali, os cortes são selecionados e pelo que espiei, separados por refrigeradores. Deve ter Angus beef, steaks, prime ribs diversos, essas coisas – deliciosas, obviamente, mas impraticáveis nos mercadinhos.

A troca de Tropical para Suprema, porém, talvez queira dizer um pouco mais sobre o mero reposicionamento de um mercado. Talvez tenha mudado acompanhando a tendência da vizinhança, agora visivelmente mais chique do que era uns anos antes, chegando com suas SUVs no lugar de velhos buggies. E, claro, com gosto mais exigente que outrora. Uma vizinhança refinada.

Quem sabe, essa mudança tenha sido encarada com naturalidade e sem estranhamento e isso, quiçá, fala até um pouco mais da nossa sociedade empreendedora, essa mais de redes que de rua, mais de cartão de crédito do que de caderninho. Essa que prefere ficar um pouco de lado, enquanto os outros ficam para lá, mais longe da avenida.

Crônica publicada na edição 214 da Parêntese e que não deixa de ser uma prima d’A cidade com eme no céu

A cidade com eme no céu

*Crônica feita originalmente na disciplina Laboratório de Narrativas Urbanas, do Propur/UFRGS, e publicada na revista Parêntese.

Começou lentamente, mas, pouco a pouco, ele foi se espalhando pelos céus da cidade. Um eme. Em azul e amarelo, foi dominando certas paisagens daquele lugar que leva alegria até no nome.

Colocado bem acima do verde até outrora mais presente no horizonte da cidade, o eme adentrou de ruas de bairro a avenidas famosas. Basta olhar adiante e, pá!, eis que surge aquele símbolo áureo-cerúleo.

Sob as três perninhas desse eme, soterraram-se décadas de histórias e resquícios do que um dia fora aquele lugar – que hoje até está diminuindo, mas já foi, e ainda é, porto de muita gente.

Ainda assim, para alguns o eme é o eme de modernidade. Quem não iria gostar de altas torres de vidro no lugar de prédios velhos? Quem não gosta de alto padrão a perder de vista?

E ainda com marca assinada, garantindo um status lá no céu, para todos verem. Um eme. Em azul e amarelo, claro.

Mas não para por aí. Numa época de parceirizações, por que não levar o eme da moda a ainda mais lugares? Com luzes nas árvores das ruas, com atrações com nomes in English. Um shopping com eme no teto, um parque com o eme no chão.

E tudo meio assim. Uma cidade com eme, de mescla: agora tudo é privado, mas meio público. Tudo é meio público, mas também privado. Confuso? Na dúvida, olhe para cima. Vai ter um eme lá, lembrando onde você está.

Viver perto do mar

Por certo a vida é melhor quando se mora ou ao menos se habita um apartamento que tenha sacada com vista para o mar. Por alguns dias, tive essa oportunidade, mas não é exatamente sobre isso que vou tratar agora e sim sobre a relação entre a praia e a noite.

Creio que nossa relação enquanto sociedade com o período noturno ainda precisa ser aprimorada. É preciso viver mais a noite sem ser necessariamente um boêmio, um artista, um plantonista ou, sei lá, um jornalista. Da cidade de onde venho, noite é sinônimo de receio. E como é triste isso.

Triste, mas costumeiro. Daí a importância de conhecer novos horizontes e formas de se viver a própria cidade.

Por isso também a minha admiração às cidades litorâneas e seu jeito com a noite. Pouco mais de dois anos atrás, lembro como achei revolucionárias duas mulheres sentadas numa praça de Florianópolis por volta das 21h. Apenas pelo fato de elas ocuparem aquele espaço naquela hora, como soi acontecer por lá.

Já vi histórias de Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros nomes da bossa nova cruzando Copacabana, Ipanema e Leblon a pé e de madrugada cantarolando melodias que viriam a se tornar sucessos. Uma cidade é isso, é para ser vivida ao longo de suas horas. A proximidade com o mar, talvez, seja um atrativo para tanto.

Na praia de Itaparica, em Vila Velha, onde me hospedei por alguns dias, tive uma sacada de frente para o mar – aliás, obrigado à funcionária do hotel que fez essa reserva. E como é lindo ver a vida na orla depois que o sol se põe. Crianças, pais, atletas, namorados aproveitando a praia mesmo sem a presença do sol. Vivendo.

Basta um poste com luz e aproveita-se o clima ameno dali. E, quando vai um, o outro perde o medo de acompanhar. Assim vai indo. Assim cria-se um costume, um hábito.

Não conheço a história recente de Vila Velha. Ela me parece que passa por um período de recauchutagem, puxada em parte pela especulação imobiliária. Ao olho de quem não a conhecia, apresenta-se com uma orla aparentemente renovada e prédios que por certo deram aquela gentrificação pelo menos às quadras próximas aos mares que banham Itaparica, Itapõa e Costa.

Ao menos as praças dali também estão novas neste abril de 2023. E cheias de crianças, como devem ser, até depois que o sol se põe e a mãe permite. A praia, assim, permanece cheia de vida, dia e noite. Ganha a sociedade. Ganha quem pode morar na praia.

Um abraço com eme alongado

Eu fiquei pensando, mas o que aquele abraço teve de especial? Havia sido uma boa conversa, com uma pessoa legal, que ainda ostenta aquela aura de mamãe. Mas até aí tudo bem. Há muitas boas conversas com pessoas legais ao longo de um bom dia.

Agora, por que tinha guardado aquele momento tão banal com um carinho a mais do que o normal? Essa dúvida me perseguiu horas a fio em pleno dia de semana.

Foi quando me dei conta: não foi exatamente o abraço, e sim o momento logo posterior a ele. Aquele em que o esperado era que nos desvencilhássemos, mas que inconscientemente acertamos de nos segurar um instante a mais e emitir quase que um muxoxo, “hmmmmm” – assim, com um eme alongado.

Só abraços especiais têm esse desfecho, com esse eme alongado, que sonzinho simples que diz tanta coisa boa mesmo sem especificar nada. Não é com qualquer um que se segura um (ou mais) segundo(s) a mais expressando esse eme. Ainda mais em via pública.

Quando sai ao natural, assim, torna-se ainda mais querido. Esse, em específico, foi a primeira vez entre eu e essa pessoa. Sinal de que boas amizades ainda nascem por aí.

Sobre abraços e sociedade

Tem na minha carreira como jornalista dois abraços que considero inesquecíveis. Eles são separados por cinco anos, ocorreram em redações e momentos completamente diferentes. Mas, dei-me conta nesta semana, têm algo em comum.

O primeiro deles foi numa noite fria de junho de 2017, no Correio do Povo. Era véspera de um feriadão às portas do início do inverno. Corriqueiro pr’aquela noite talvez fosse termos atualizações de movimento de estrada, coisas assim. Só que não foi o caso.

No início da noite, a Brigada Militar cumpriu ordem judicial para a desocupação de um prédio no Centro de Porto Alegre – o qual, ao menos até pouco tempo atrás, seguia vazio. Foram cerca de 200 pessoas de 70 famílias, que lá estavam havia mais de ano, colocadas para fora. À noite, em véspera de feriadão e no frio crianças testemunharam a brutalidade da força do Estado no cumprimento de uma decisão judicial.

Foram horas tensas, com sirenes, incertezas e violência até que tudo enfim fosse apaziguado à força. Escalada para cobrir pelo jornal, eu lembro como a repórter, ainda jovem, voltou para a redação do CP: olhos esbugalhados, falando sem parar, assustada. Um tanto dela queria passar mais informações, um tanto queria desabafar, porque o jornalismo é, ao fim, uma ciência humana.

Eu já era editor, mas a única coisa que lembrei de oferecer na hora para ela foi um abraço, prontamente recebido depois de ter testemunhado tudo aquilo a poucas quadras do jornal. Ela precisava de alguns segundos de calma. Certamente eu também.

O outro abraço que não vou esquecer foi na minha colega do Matinal, minutos após a vitória de Lula nas eleições 2022. Um abraço com olhos marejados, emocionado, como quem começa a acordar de um pesadelo que foi (ainda é, em tese) o governo Bolsonaro. Um abraço de esperança em meio a tempos sombrios em tantas áreas sociais.

O fio que liga essas duas cenas passa pela atuação da polícia militar. A mesma corporação que protagonizou cenas fortes em 2017 é a que pediu gentilmente – e descaradamente foi ignorada – a manifestantes cuja pauta golpista e antidemocrática sequer é escondida sair do lugar em que estavam.

A questão não é defender o emprego da violência ou de uma mera conivência. Mas, entre esses dois abraços, eu fico me perguntando o porquê de agir de formas tão diferentes. E, nesta reflexão, eu não posso ignorar contra quem eram os mandados, que cor tinham os manifestantes em questão nos dois eventos.

Situações como essas escancaram que ainda temos um longo caminho enquanto sociedade para trilhar, um racismo estrutural para combater e uma cidade mais justa para construir. Que nos dê mais motivos para abraços esperançosos do que de abraços de consolo. Não vai ser com ares de injustiça ou movimentos antidemocráticos que chegaremos à ela.