Trajetórias

“Daqui a dez anos eu quero estar trabalhando numa agência e ganhando R$ 10 mil por mês.” Ouvi essa frase ali por 2008, de uma colega publicitária, que assim como eu estava às vésperas de se formar na faculdade. Eu creio que guardei na memória essa frase por achar que ela continha uma ousadia expressiva para uma formanda (se R$ 10 mil hoje ainda é um bom salário, naquela época era uma fortuna), mas também por ecoar em mim – às vésperas de virar um profissional diplomado – a total falta de planos que tinha para o meu futuro.

Ok, “total” é meio exagerado dizer. Mas a verdade é que nunca fui de fazer planos a longo prazo, embora seja capricorniano-permanentemente-pé-no-chão – ou talvez seja exatamente por isso, enfim. Findada a faculdade, eu queria trabalhar, reportear romanticamente a pauta que viesse, onde que fosse e imaginando que, mais cedo ou mais tarde, chegaria à RBS para trabalhar na Zero Hora. Esse era o sonho fomentado pela Famecos daquela época. Antes, por razões pessoais, queria trabalhar no Correio do Povo.

Bem, realizei só a parte do CP. E lembro com carinho da vez que mostrei para a minha avó, em seu último ano de vida, meu nome impresso naquele jornal que ela assinou durante décadas. Com a parte da Zero Hora nunca se realizando, apesar de chegar a estar próxima algumas vezes, fui ficando na Caldas Júnior por tempos a fio, até completar 12 anos de casa. Saí para um lugar que sequer existia naqueles idos de 2008. Saí para um jornal que ajudei a fundar, veja só.

A Matinal completa neste 21 de setembro mil edições, enviadas ao longo de pouco mais de quatro anos e meio de trabalho. Presente na confecção da maior parte delas, sou, dentre os três que criaram esse projeto em 2009, o que restou no dia a dia da produção desta newsletter. Enquanto o Paulo Antunes resolveu olhar jornalismo por fora, o Filipe Speck ascendeu a diretor do que hoje é a empresa Matinal.

A efeméride me fez retornar àquela conversa com a minha colega. Passaram-se mais que dez anos, eu não ganho R$ 10 mil mensais, sigo sem planos profissionais plenamente estabelecidos para o futuro, ainda que agora possa contar com alguma tranquilidade advinda da experiência, essa coisa que se conquista com o passar dos anos.

Hoje tenho algo para me orgulhar. Algo maior do que a aspiração de emprego ou alto salário desejado de formando. Ajudei a criar um veículo relevante para a minha cidade, que nasceu da inquietude e da disposição de três e, logo depois, tomou forma e se consolidou com a ajuda de muitas outras mãos de competentes profissionais que estiveram ou ainda estão ao nosso lado.

Pode não ser R$ 10 mil, pode não ser o emprego dos sonhos. Mas é uma história e tanto. Que seja uma longa trajetória.

Sobre abraços e sociedade

Tem na minha carreira como jornalista dois abraços que considero inesquecíveis. Eles são separados por cinco anos, ocorreram em redações e momentos completamente diferentes. Mas, dei-me conta nesta semana, têm algo em comum.

O primeiro deles foi numa noite fria de junho de 2017, no Correio do Povo. Era véspera de um feriadão às portas do início do inverno. Corriqueiro pr’aquela noite talvez fosse termos atualizações de movimento de estrada, coisas assim. Só que não foi o caso.

No início da noite, a Brigada Militar cumpriu ordem judicial para a desocupação de um prédio no Centro de Porto Alegre – o qual, ao menos até pouco tempo atrás, seguia vazio. Foram cerca de 200 pessoas de 70 famílias, que lá estavam havia mais de ano, colocadas para fora. À noite, em véspera de feriadão e no frio crianças testemunharam a brutalidade da força do Estado no cumprimento de uma decisão judicial.

Foram horas tensas, com sirenes, incertezas e violência até que tudo enfim fosse apaziguado à força. Escalada para cobrir pelo jornal, eu lembro como a repórter, ainda jovem, voltou para a redação do CP: olhos esbugalhados, falando sem parar, assustada. Um tanto dela queria passar mais informações, um tanto queria desabafar, porque o jornalismo é, ao fim, uma ciência humana.

Eu já era editor, mas a única coisa que lembrei de oferecer na hora para ela foi um abraço, prontamente recebido depois de ter testemunhado tudo aquilo a poucas quadras do jornal. Ela precisava de alguns segundos de calma. Certamente eu também.

O outro abraço que não vou esquecer foi na minha colega do Matinal, minutos após a vitória de Lula nas eleições 2022. Um abraço com olhos marejados, emocionado, como quem começa a acordar de um pesadelo que foi (ainda é, em tese) o governo Bolsonaro. Um abraço de esperança em meio a tempos sombrios em tantas áreas sociais.

O fio que liga essas duas cenas passa pela atuação da polícia militar. A mesma corporação que protagonizou cenas fortes em 2017 é a que pediu gentilmente – e descaradamente foi ignorada – a manifestantes cuja pauta golpista e antidemocrática sequer é escondida sair do lugar em que estavam.

A questão não é defender o emprego da violência ou de uma mera conivência. Mas, entre esses dois abraços, eu fico me perguntando o porquê de agir de formas tão diferentes. E, nesta reflexão, eu não posso ignorar contra quem eram os mandados, que cor tinham os manifestantes em questão nos dois eventos.

Situações como essas escancaram que ainda temos um longo caminho enquanto sociedade para trilhar, um racismo estrutural para combater e uma cidade mais justa para construir. Que nos dê mais motivos para abraços esperançosos do que de abraços de consolo. Não vai ser com ares de injustiça ou movimentos antidemocráticos que chegaremos à ela.

Daqui em diante

Uma nova redação: em casa, com café e água para a filha

Deixar 12 anos de uma grande redação estadual pra trás não foi uma decisão fácil. Mas ela foi sendo construída gradualmente a partir dos fins de 2018. Naquelas semanas, eu, Filipe Speck e Paulo Antunes, entre muitos e muitos cafés, sentamos para construir algo. Dali saiu o que hoje é o Matinal Jornalismo, que apareceu oficialmente para o mundo em março de 2019.

Sair do Correio para o Matinal não foi uma simples troca de redação, mas uma mudança de proposta e perspectiva. E aqui friso que o novo não buscar busca necessariamente ser melhor que o anterior, e sim distinto: em cobertura, em pautas, em formas de se chegar ao leitor.

O ambiente jornalístico do Brasil está poluído e ruidoso há tempos. Nunca se leu e se publicou tantas notícias para se compreender tão pouco. Existe, portanto, uma falha em algum ponto, seja do jornalismo, seja no receptor, seja no meio. Acredito que essa poluição venha, principalmente, do excesso.

Daí a necessidade de ser diferente. De forma objetiva, contextual e localizada, o Matinal se propõe a falar sobre Porto Alegre, a discutir a Capital e visa dar voz e ser participante de mudanças para tornar a cidade um lugar melhor. Sem inventar a roda, porém ocupando um espaço que se percebeu vago.

Jornalisticamente, há bastante trabalho pela frente para nos livrarmos desse ambiente poluído. Apenas culpar as redes sociais pode não ser o suficiente para escapar dessa crise, que passa, ao meu ver, por educação midiática desde cedo.

Também é preciso defender o jornalismo profissional, só que isso vai ocorrer em um contexto de se passar a cobrar por algo que o leitor se acostumou a receber de graça – em timelines, por mensagens ou e-mails. Há, porém, uma forte crise financeira, que atrapalha ainda mais esse processo. Faz-se, ainda mais necessário, ser relevante no dia a dia.

O caminho não é fácil, tem vários percalços. A estrada é longa e há de ser trilhada. Espero contar contigo, caro(a) leitor.

O Correio do Povo

Eu tenho uma lembrança do Correio do Povo que vem da tenra infância. Era esse jornal que chegava cedinho na casa dos meus avós, no Menino Deus, ali pela década de 1990. Já não era o Correião de outrora, e sim a sua versão atual e mais compacta que, pouco a pouco, estava reconquistando seu público pelo Rio Grande do Sul.

O Correio era – e ainda é – um jornal que os mais velhinhos preferem. Eu lembro que certa época chegaram a dar uma assinatura da Zero Hora em determinado momento para os meus avós. Eles sorriram amarelo, ficaram com o novo jornal pelo tempo de assinatura contratado para, em seguida, voltarem ao antigo.

Enfim, o CP sempre me foi uma memória infantil e ao mesmo tempo uma meta. Quando estudante de jornalismo, entrei todo sem jeito para uma pesquisa no icônico prédio da esquina da rua Caldas Júnior com a Andradas. Encantado. E encantamento também aconteceu quando me vi repórter de lá, a partir de setembro de 2009. Algumas vezes fiz um “uau” ao bater crachá lá e perceber o que estava acontecendo de fato era real.

Ainda deu tempo de mostrar uma matéria assinada minha para os meus avós. Foi bem legal para eles verem o meu nome na folha que tanto leram ao longo dos anos. Da mesma forma, fiquei lisonjeado quando uma fã porto-alegrense qualquer da Julieta Venegas utilizou uma entrevista minha para pedir autógrafo da cantora. Trabalhar no Correio sempre foi ter certeza de que o seu trabalho chegaria longe.

Ao longo de 12 anos, matérias foram o que não faltaram. E quem trabalha com internet, acaba não tendo editoria específica, então, neste tempo, eu cobri: o leilão da Cowparade (sim…), o bi do Inter na Libertadores, o tri do Grêmio na Libertadores, o incêndio no Mercado Público, inúmeros temporais, a repercussão da tragédia na boate Kiss, os protestos na rua em 2013, a Copa em 2014, a queda do Inter, o impeachment da Dilma, a greve dos caminhoneiros, seis eleições, a pandemia de Covid, entre tantas e tantas pautas que, uma a uma, me tornaram macaco velho de redação.

Para reportagens, consultas, blogs ou podcasts, tive oportunidade de entrevistar pessoas muito interessantes – assim como outras nem tanto – e fui longe pelo jornal: pro Japão, pro Uruguai – mas também escrevi sobre Panamá, Argentina, Espanha, Alemanha… –, pro Rio, pra São Paulo, pra Recife e, tão ou mais importante, pra Caxias do Sul. Uma trajetória e tanto, que aquele guri que lia o jornal na copa da casa da vó jamais imaginaria.

Ainda que nem todos os dias tenham sido belos – e, de fato, não foram – agora o que fica são as lembranças boas, os amigos e, claro, o agradecimento ao local que passou de inspiração à casa em que cresci e amadureci profissionalmente.

Quando estive perto de D10S

Eu ainda estava nos meus primeiros dias da primeira vez que fui a Buenos Aires. Turista jovem e fã de futebol, acabei em uma partida do Boca, em uma tarde ensolarada de dezembro. Não era qualquer partida e sim uma possível definição de título argentino.

Foi quando estive mais perto de Deus.

Se não o mais famoso e divino, certamente um dos mais idolatrados naquele canto de mundo, que eu aprendia a amar. Era Diego Armando Maradona lá, el D10S para muitos que ali, tanto os que vestiam azul e ouro, como outros tantos que gostam de outras cores na jaqueta.

Naquela época, Maradona recém havia assumido a seleção da Argentina. Comandaria uma das maiores paixões daquele povo. Mas naquele momento não era treinador ou dirigente. Era torcedor. A Bombonera estava lotada e pulsava, numa atmosfera incrível.

Antes da bola rolar, quando a câmera que captava imagens para o telão encontrou Maradona em seu camarote, houve o êxtase. “Marado, Marado”, gritavam. Devotavam aqueles milhares.

Foi inesquecível ver Diego. Mesmo de longe. Aquela cena me ensinou muito sobre o ser argentino. ¡Gracias y que en paz descanse!

Numa homenagem a Maradona, o Direto ao Ponto desta quarta foi sobre ele:

A tempestade na Espanha

Plaza Mayor

Ninguém sabe ao certo quando a pandemia vai terminar, quando a vida, doravante em uma “nova realidade”, emergirá a pleno. Mas depois de algumas semanas de muita dor e milhares de tragédias familiares, o sol parece estar próximo de raiar em alguns lugares, como a Espanha.

Nesta semana, iria entrevistar duas amigas minhas que moram por lá, para o podcast Direto ao Ponto. Iria ser entrevista, virou conversa – que é o que acontece quando as boas entrevistas fluem. Ficou um relato claro de que a pandemia não é “gripezinha” e sim um problema de dimensões catastróficas à sociedade.

Como tudo na vida, essa pandemia vai passar, com mais ou menos dor por aqui. Não foi a primeira grande crise sanitária, provavelmente não será a última. A diferença é que nessa podemos salvar melhor os registros, para quem sabe tirar lições para o futuro, de como atravessaremos essa tempestade.

O resultado está aqui.

 

Obrigado Mariana e Terena por ajudarem nesse relato. Fico feliz pela ajuda, e ainda mais, por saberem que vocês estão bem.

Farol nas sombras

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Sem vaidade, mas fiquei genuinamente feliz e satisfeito ao saber da aprovação de uma ex-estagiária minha em seu Trabalho de Conclusão de Curso. A minha, agora, colega Lívia Rossa tratou sobre curadoria no jornalismo – um tema que, a meu ver, merece atenção especial por esses tempos.

Pude ajudá-la no TCC ao ser entrevistado. Já não estou há pouco tempo como editor no Correio do Povo e, mais recentemente, também atuo diariamente na confecção da newsletter Matinal. Como se não bastasse, há 12 anos respondo pela comunicação na Federação Gaúcha de Judô. Alguma coisa já vi e já tive que decidir sobre caminhos a seguir, portanto.

Quando ela falou comigo, o que seria um café virou almoço. Aquela coisa corrida, sem muito tempo pra pensar. O que pode tornar toda entrevista mais genuína, como de fato foi. A Lívia perguntando, eu pensando e respondendo com um olho no prato e outro no relógio. Uma rotina de trabalhador proletário.

A Lívia fez perguntas difíceis, admito. Mas ótimas para se refletir, assim, de supetão, quando somos mais honestos. Ao ser questionado sobre qual o papel do jornalismo hoje em dia, ainda consegui bolar uma metáfora que, sinceramente, espero que tenha sido usada no texto dela, de tão poética que ficou. Era algo como que o jornalismo deveria ser um farol em meio aos atuais tempos obscuros.

E, sim, deveria. E deve!

Podemos trocar a metáfora dos ares sombrios para ruidosos. Talvez seja mais adequado, porque o que ofusca hoje não é a claridade da informação, e sim a quantidade de barulho em volta. É muita gente falando. É muita versão para um fato. É muita autoridade falando absurdo – e às vezes, principalmente, só para aparecer.

Há tempos que tenho uma bronca com o jornalismo declaratório. Cada matéria de “fulano diz” talvez necessite de outra, a do contraponto. Só que aqui temos um leitor apressado, que, ao fim, pode vir a perder o contexto, por mais links, gráficos – e todas as outras possibilidades da internet – que se tenha à disposição. Nisso, elogio – e muito – o Nexo e o El País pelo jornalismo que produzem. Creio que jornalistas deveriam se inspirar mais nesse norte que ambos seguem.

Fato é que o modus operandi jornalístico mudou de uns anos pra cá. Se, quando comecei a frequentar redações, pouco mais de dez anos atrás, havia o embate impresso x internet, hoje, com a massificação de smartphones – que são outra forma de se consumir o jornalismo, diferente do que simplesmente “na internet” –, agora há o desafio cada vez mais permanente da edição, ou, se olharmos com calma, da curadoria.

A provocação é: se temos tudo, que tipo de material dispomos ao alcance do nosso leitor?

É papel, penso eu, do bom jornalista separar o joio do trigo em meio a todo esse zumzumzum. Para o grande e apressado público as fontes podem estar mais opacas – aqui entra outro desafio: é preciso recorrentemente se enxergar como leitor para pensar curadoria e edição. Nas redes sociais afora, muita gente disfarça panfletagem como jornalismo exatamente para tentar confundir hoje em dia. Passar à frente a versão desejada. “Precisa ter olhos firmes, pra este sol, para esta escuridão”, já alertaram Gil e  Caetano.

Temos que saber bem qual conteúdo devemos propagar. É preciso ser farol em tempos obscuros.

No mais: parabéns, Lívia! Que a nota 10 no TCC seja o início de uma grande carreira.

Um podcast

Ou: vendendo um pouco mais do meu peixe

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Neste 1º de outubro, o Correio do Povo completou 124 anos de história. De dez de todos esses anos, eu faço parte. Ainda imberbe como repórter da primeira equipe exclusiva da web do jornal e, de 2013 para cá, editor.

Ao longo deste tempo meu na redação, fiz alguns quantos trabalhos que considero especiais – muitos linkados na página “O jornalista Tiago”, neste mesmo blog.

Colaborei também em uns processos de inovação do jornal. O mais recente deles é em um dos novos podcasts que o CP lançou em seu aniversário. Estou à frente do Direto ao Ponto, que busca aprofundar um pouco uma determinada notícia do dia, além de oferecer um breve giro de notícias ao ouvinte.

É um trabalho de formiguinha, que por certo ainda tem muito a ser melhorado. Neste caminho, seria uma honra contar com a tua audiência, em diversas mídias, ou diretamente neste link. E, claro, tuas críticas.

Crise de quem?

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Houve um desafio e tanto sugerido pelo Carlos Corrêa uns dias atrás. Destrinchar esta crise no mercado literário, após os pedidos de recuperação judicial de Cultura e Saraiva. Se há uma impressão – comprovados por índices de mercado – de que as pessoas leem cada vez mais, como assim essas perdas milionárias? Que é crise é essa, afinal?

Ele falou comigo e com o sabido do Luiz Gonzaga Lopes para tocar a pauta. Entre pesquisas, ligações e entrevistas, foi surgindo uma reportagem, que é está na capa do +Domingo, do Correio do Povo deste 9 de dezembro de 2018.

Na minha contribuição, entendi um pouco mais este pequeno universo das livrarias de bairro. Desde como podem funcionar bem quando em parcerias até o poder de revitalização que conseguem gerar – quem não gosta de ter uma simpática livraria por perto – e sem precisar ir até um shopping center?

Outra coisa, descobri que hoje é bem mais fácil – e quiçá até lucrativo – publicar um livro. Com custos caindo até 40% na comparação com o ano passado. A crise, então, é de quem? Ah, e-books? Bom, isso é coisa só de quem lê vorazmente. Em pleno 2018, quase 2019, o consumo de literatura é algo sensorial. “As pessoas gostam de sentir o cheiro do livro”, disseram-me dois entrevistados, em diferentes contextos, ao longo da apuração.

Enfim, o texto no todo é grande e tem a opinião de muita gente do meio a respeito do mundo dos livros – especialmente nas bandas aqui do Sul. A versão online está disponível neste link.

ps: da minha parte, fiquei feliz em conhecer a livraria Cirkula – que também é editora e café. Daqueles recantos literários apaixonantes que encontramos bairros afora. Recomendo este passeio, caro(a) leitor. Fica ali no Bom Fim. 

ps2: no fim do ano passado, por ocasião dos dez anos deste blog, subi no Issuu um arquivo de word mal diagramado que defini como “quase um e-book”. Com a matéria, descobri que hoje é até fácil publicar um livro. Quem sabe um dia, quem sabe.

A memória de um 11 de setembro

museu memoria

Ainda lembro bem daquela terça-feira. Assim que cheguei da aula, por volta do meio-dia, soube de todo o ocorrido. A TV não parava de passar aquelas imagens. As torres gêmeas de Nova York atacadas e posteriormente caindo. Parecia cena filme holywoodiano. De lá para cá, muita coisa mudou.

Mas bem antes de 2001, houve um outro e lamentável 11 de setembro. Em 1973, no Chile. Aquele 11 de setembro alterou a vida de um país inteiro e junto dele afetou diretamente a vida de cerca de 40 mil famílias.

Conheci um pouco mais a história e a narrativa daquele dia – e dos anos seguintes – durante uma visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, em abril passado. É um lugar forte, de reflexão.

Entrevistei o diretor do museu dias depois. Virou matéria pro Correio do Povo, porém aqui vai o texto completo, livre das limitações de espaço. Uma entrevista na qual se ressalta: é importante lembrar para não esquecer.

“Democracia é uma construção coletiva”

Museo memoria

40 mil histórias contadas | Foto: Divulgação

“É importante educar em uma nova cultura de respeito, de bom trato, da ética dos direitos humanos, recordando o que aconteceu, mas ajudando as pessoas a refletir sobre o que está acontecendo agora com esses temas, com nossos indígenas, com os temas de gêneros, a migração, entre outros”, conclui Francisco Estévez.

Estévez é chileno e trabalha em Santiago, mas sua fala poderia ser adaptada a diferentes realidades e sociedades da América Latina – e também do mundo, nesses tempos de polarização. Ele é o diretor do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um dos 15 museus mais populares do continente e o mais visitado do Chile.

Se museus normalmente levam a um passado que pode vir a despertar curiosidade ou mesmo nostalgia, o Museu da Memória, não. Dentro do prédio – projetado por arquitetos brasileiros – o conteúdo remete a um período sombrio do país: a ditadura, que durou de setembro de 1973 até março de 1990. E que deixou um saldo oficialmente reconhecido de 40.018 vítimas, sendo 3.065 mortos ou desaparecidos.

O convite à reflexão ocorre de forma interativa. No museu, pode-se desde ouvir o último discurso do presidente deposto Salvador Allende, no fatídico 11 de setembro de 1973, a ver a cobertura jornalística da época da reabertura. Isso passando por lembranças dolorosas em memória das vítimas, dispostas ao longo dos três andares da casa.

Com a democracia chilena se aproximando dos seus 30 anos – e com alternância entre esquerda e direita no poder – Estévez crê que seja necessário não esquecer do período sob o general Augusto Pinochet. Principalmente para que uma época dessas não ressurja.

“Na América Latina, estamos vivendo um ressurgimento de posições negacionistas, que pretendem revisar e justificar o que aconteceu na ditadura. São provocações na hora de revisar os atos de violações cometidos pelo Estado chileno, argumentando que não haveria incorrido nenhum abuso de direito”, diz. “Este é o nosso maior desafio como museu.”

Citando uma pesquisa a qual atestou que 57% dos jovens chilenos que cursam o oitavo ano do ensino básico concordaria viver em uma ditadura desde que ordem e segurança fossem garantidas, ele afirma: “É importante que todas estas gerações dialoguem sobre o tema”.

Recheado de histórias individuais e coletivas, por meio de fotos, vídeos, documentos e gravações, o museu foi visitado por cerca de 150 mil pessoas no ano passado. Os visitantes foram oriundos de 187 países, sendo Brasil e Estados Unidos a maior parte dos estrangeiros que passaram por lá. Houve também “um aumento significativo” de venezuelanos que repassaram a história da ditadura chilena, segundo Estévez. O Chile, por sinal, é um dos destinos mais procurados pelos venezuelanos que optaram por deixar o país nos últimos anos.

Encarando a história

Mas que história é essa? Passadas quase três décadas, debater ditadura no Chile segue como um tabu. Igualmente como em outros lugares, há quem denuncie e quem apoie. “Opositores do museu reclamam do caráter não-histórico da iniciativa, já que somente mostra uma parte da ‘verdade’, aquela que dos ativistas da esquerda e partidários da Unidade Popular. Consideram que o período entre 1973 e 1978 (até a promulgação da lei da Anistia) correspondente a uma situação de guerra interna. Assim não haveria vítimas e sim baixas de guerra”, explica Estévez.

Não é só. “Alguns intelectuais exigiam a inclusão de um ‘contexto histórico’, no qual estaria marcado pela deterioração do processo democrático chileno, o que explicaria a extrema repressão depois do 11 de setembro. Neste caso, não negam as atrocidades da ditadura e ainda menos a necessidade de um lugar de memória, mas igualam a retórica revolucionária do governo de Allende com a violência do golpe”, acrescenta. Para esses – contextualiza Estévez – o golpe militar se deu pelo medo do comunismo e a ameaça de um processo semelhante ao que aconteceu em Cuba.

“Uma luta memorial segue presente entre quem disputa o status de vítima. No entanto, hoje em dia a interpretação histórica favorece majoritariamente aqueles que sofreram as atrocidades da ditadura”, conclui o diretor do museu.

Críticas na internet

Esse embate acaba se transferindo para a internet. “Há certo ódio que recebemos diariamente nas nossas redes sociais. Isso porque há pessoas que negam o ocorrido”, avalia Estévez. Ainda assim, a página oficial do museu no Facebook tinha, no início de agosto, uma avaliação de 4,6 numa escala que vai até 5. Além de 152,7 mil fãs.

Entre junho e julho, a página do Museu da Memória e dos Direitos Humanos no Facebook recebeu 32 avaliações ou recomendações. Dessas, sete foram negativas – com duas estrelas ou uma, numa escala de até cinco. “A memória tem que ser um conjunto da sociedade e não de um setor político”, criticou Christian Chamorro, cuja foto de perfil é um capacete medieval. Já uma mulher, identificando-se como Ines Canales e com uma foto de cachorro no perfil, apenas justificou sua única estrela ao museu com a frase: “Humanoides desgraçados”.

Apresentando-se como um chileno morador de Nova York, Cristian Subiabre foi mais enfático em sua crítica: “Isso é uma mentira, feita para branquear os assassinatos e atrocidades da esquerda, ainda impunes”, postou, citando um político comunista que, segundo ele, seria responsável direto por pelo menos seis assassinatos. “O museu não vai falar sobre isso.”

No lado real, o museu reconhece que já foi alvo de protestos ao longo de sua história, mas sem ataques diretos às dependências, onde, na entrada, está a declaração universal dos direitos humanos, proclamada pela ONU, em 1948.

Democracia

Francisco Estévez afirma que o museu procura estabelecer canais de diálogo, inclusive na internet, quando lançou uma campanha #quepasasiolvido (o que acontece se esqueço). “Temos muita gente que nos ataca, mas a satisfação que outros defendem a oportunidade de ter um lugar que recorda o que nunca mais deve acontecer em um país: a violência exercida do Estado com a destruição da democracia”.

E democracia, na opinião dele, é “uma construção social, política e cultural”. Logo, é algo que corre riscos. “A democracia é uma responsabilidade comum, coletiva e cidadã. E quando isso se abandona então a democracia fica em um estado de fragilidade”, define. “Efetivamente se requer um compromisso permanente de educação e também um envolvimento dos atores sociais, os jovens e a política.”

Numa época de polarização extrema, tempos como os que o museu reporta podem voltar. E até por isso Estévez valoriza a importância do Museu da Memória e dos Direitos Humanos: “O que acontece é que se esquece que nunca, na democracia, é aceitável dar um golpe de Estado para resolver os antagonismos políticos”.