O sonho do Rodrigo

O sonho do Rodrigo era engravidar. Literalmente. Até dizem as más línguas que quem ele queria que realizasse esse desejo seria um certo chef francês, mas isso é outra história. Fato é que, ébrio ou não, ele não escondia: o sonho do Rodrigo era engravidar.

Rodrigo sempre foi desses caras que sabe das coisas. Apesar de não ter filhos, como poucos ele metamorfoseia-se de amigo a pai, filho, tio, irmão e, por que não?, mãe. Pessoas assim são raras, porém, reconheçamos, encarnar essa última personagem é ainda mais difícil, pois não há vínculo maior que o da mãe.

E acho que isso explica o sonho dele. Imagino eu que a ideia de ser mãe é para ele ter um canal que enfim dê vazão sem precisar disfarçar a todo aquele companheirismo, cuidado e amor que só um espírito superior, como é o caso do Rodrigo, tem. Coisas da vida.

Lembrei disso madrugada dessas, quando o silêncio da casa havia sido bruscamente rompido por um choro da Maria Flor. Um choro desses de assustar e dar dó. Foi questão de segundos até eu, um pai presente e tal, chegar ao quarto dela e oferecer o braço do conforto e da garantia que tudo vai ficar bem.

No que, sem abrir os olhos e nem parar completamente de chorar, ela murmurou como quem pergunta, exclama e torce ao mesmo tempo: “Mamãe?!”. Fiquei feliz por estar escuro nesta hora para que ela não visse a cara que devo ter feito em reação.

Mas tudo bem, com o tempo, coube a mim se acostumar, porque, mesmo com todo o meu currículo de idas à pracinha, de chocolates contrabandeados, já entendi que nada supera o vínculo original. Por mais que eu tente concorrer, sou só o pai, aquele que ela reconhece depois.

E aí eu lembro das conversas do Rodrigo. O Rodrigo sonha certo.

Nuance

Fora um arrepio involuntário que entregara seu segredo. Quando percebeu, já era tarde. A reação espontânea juvenil quebrou a estratégia tão bem montada, com tantos olhares, frases e sorrisos subjetivos. Tudo ficou enfim exposto àquela indizível verdade.

O protegido âmago encontrara-se então à mercê daquele olhar mais atento, da interpretação óbvia dos fatos prólogos. Por causa de uma nuance corporal. Tão fora de hora quanto incontrolável. E, acima de tudo, dúbio.

Fora, enfim, desvelada. Será?

Apesar disso tudo

São 3 horas de uma madrugada de inverno. Não é mais o pior frio, mas ainda restam semanas até a próxima estação. E chove, melancolicamente devagar.

Ainda assim, um passarinho canta. Um não, alguns se for prestar mais atenção. Acertam até uma melodia ensaiada vez que outra, entre árvores anônimas espalhadas pelo bairro.

E como cantam. Mesmo faltando horas para o dia, dias para a primavera, primaveras para um ano que seja mais alegre que esta profunda noite a qual se encontram seja esquecida.

Em meio a todo breu, cantam. Apesar do frio, apesar da chuva e de um agosto – justo agosto! – sem fim. Cantam para eles, para nós. Apesar disso tudo.

Aos insones, não deixam esquecer: um novo dia há de nascer em breve. Algo novo surgirá, bem diferente desta madrugada, que parece interminável. Mas não será.

Veterano

bola

A bola veio a feição, devo reconhecer. Após uma raríssima boa trama de passes, a bola finalmente se ofereceria em condições de um chute frontal com chance concreta de gol para o nosso time. E estávamos precisando, pois àquela altura sofríamos uma goleada em plena noite gélida de um sábado qualquer.

A tarefa não seria das mais difíceis a quem estava a menos de dois metros da bola – no caso, eu. Acelerar o passo e chegar chutando de peito de pé, para estufar as redes. Daquela distância azar era do goleiro. Fácil? Para quem nunca teve lá muita habilidade com os pés – motivo pelo qual pesou para migração ao gol – e sempre tentou optar pela velocidade, não seria complicado. Explosão muscular, apenas.

Porém, com 30 anos a comunicação entre cérebro e pernas talvez já não seja a mesma. Ou até é, mas a resposta, definitivamente, não. Fato que tentei correr, fato que inclinei o corpo para frente. E fato que caí sozinho, ralando o joelho que nem criança e sem nem ter a oportunidade de cavar falta, já que o marcador precisou pular para não acertar o corpo que se estendia no chão.

O futebol, às vezes, tem uma face cruel até para seus apaixonados seguidores. Principalmente aqueles que ingressaram na casa dos 30 anos e que, das arquibancadas dos estádios, adjetivam jogadores desta faixa etária como “veteranos”.

A bola pune, sempre.

Textos baianos: A lenda

Olha! Se é verdade, não sei. Relato aqui apenas o que ouvi de um simpático senhor sentado ao meu lado em um pequeno bar no Pelourinho, coração de Salvador. Ele puxou assunto depois de o garçom recomendar cuidado ao mexer com o celular na rua, pois, conforme ele, ladrõezinhos passariam voando com meu telefone ao menor descuido meu.

Salvador (1)

Se avexe, não

“Esquente a cabeça, não. Ele fala isso só pra impressionar”, minimizou meu vizinho de mesa, que tão de pronto começou a conversar. Logo já se pareceu um amigo, algo adoravelmente típico do comportamento baiano.

Papo vai, papo vem e ele começou a contar que foi no Pelourinho que Carlota Joaquina tomou seu primeiro banho depois de semanas a fio dentro do navio que trouxera a comitiva portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, uns dois séculos atrás.

E falando em estrangeiros, bom visitantes eram mesmos os holandeses, disse ele. “Esses não queriam dominar ninguém, apenas fazer comércio. E quando diziam que era inseguro, mas veio até um príncipe por aqui naquela época”, contou, referindo-se, imagino, ao início do século XIX (ou mais cedo ainda, no século XVIII), mas sem mencionar o nome do nobre da realeza.

Salvador (2)

Pelo amor ou pela guerra, nunca foi fácil deixar a baía para trás

“Mas correram com os holandeses”, lamentou, ao iniciar a contar a parte mais interessante da história. Segundo meu novo amigo, que solitário tomava uma cerveja, que dois navegantes holandeses sobreviveram a um bombardeio na saída de Salvador. Por sorte e resistência conseguiram nadar até a ilha da Itaparica, ao Sul da Baía de Todos os Santos.

Entretanto, o destino seguiu cruel com a dupla, que nadou, nadou até chegar logo à beira da praia onde vivia feliz uma tribo de índios. Canibais, no caso. Habituados a engolir só a carne seca do nordestino, logo viram com bons olhos aquela “carne gorda” europeia. Sem perder tempo foram à forra logo depois apreciando os músculos e a gordura de um deles. O outro navegante holandês prisioneiro foi mantido preso, “para engorde”.

Acontece que, em meio aos seus últimos dias, o rapaz de olhos claros holandeses chamou a atenção da filha de ninguém menos do cacique local. E mesmo não falando idiomas semelhantes, a linguagem corporal bastou para que houvesse encontros às escondidas entre a “princesa” da tribo e o jantar vindouro.

Ela, apaixonada, fez apelos ao pai para que soltasse aquele pedaço de carne. Pouco adiantou. Tempos depois o holandês foi devidamente temperado e comido pela tribo. Mas deixou lembranças, a principal delas no ventre da moça, que nove meses depois deu à luz a um novo indiozinho.

Só que, rapidamente constataram, era um indiozinho diferente. De pele meio escura, cabelos negros e olhos claros. Um indiozinho que, conforme a lenda que tarde dessas ouvi no Pelourinho, era ninguém menos que o primeiro caboclo do Brasil.

Se é verdade? Chicó responde:

tumblr_m8rglbesyu1rng70do1_500

Textos baianos: A música

BahiaUm mea-culpa sobre a Bahia, para fechar esta primeira série de textos baianos. Música. Confesso que cometi o que considero um pecado logo antes de desembarcar para os 11 dias que ficaria em Salvador e generalizei. Preparei-me psicologicamente para passar este tempo todo ouvindo axé e ritmos potenciais reboladores.

Ledo engano!

Por isso peço perdão pelo que pensei a Gilberto Gil, a Caetano Veloso, Dorival Caymmi e tantos outros. A Bahia é, sim, muito maior do que qualquer axé, qualquer rima fraca que por ventura já tenha feito sucesso nacional – algo que nunca representou necessarimente qualidade musical.

Se a memória não me falha, já nesta tarde de chuva em Porto Alegre, peguei quatro táxis em Salvador. E em todos a música da rádio estava ótima. Uma MPB com artistas que não conhecia, e que fico devendo nomes aqui. Extremamente agradável, juro. Talvez estivesse na Rádio Educadora, que tem o selo de garantia do Rodrigo Oliveira.

Na maioria dos trajetos, o táxi deixou-me no Rio Vermelho, um tradicional centro boêmio recentemente renovado por obras. Por lá, diversas opções. Desde o fatídico sertanejo aos tuti-tuti eletrônico.

Por lá, faço questão de recomendar, parei duas vezes no Centro Cultural Casa da Mãe. Numa quarta ouvi chorinho que me fez voltar alguns anos no tempo, para quando via o saudoso professor Darcy Alves tocar em Porto Alegre. Numa quarta, um jazz encantador. E tudo isso a poucas dezenas de metros da estátua de Jorge Amado e Zélia Gattai, do acarajé da Dinha. De baianices clássicas, enfim.

Jorge e Zelia

Jorge, Zélia, o pug e a boemia

Mas, claro, estar em Salvador e não ouvir nenhuma batucada significa não ir a Salvador. Esse ritmo tão baiano se encontra nas ruas do Pelourinho, na praia do Porto da Barra. Mais hora, menos hora o ritmado som vai encontrar teus ouvidos. Sorria, afinal, você estará na Bahia.

 

Jornalismo e a crise

Ontem foi dia do jornalista e talvez pela data esteja meio sentimental, especialmente nestes momentos turbulentos seja nas redações ou em salas de governo. Mas, com certo otimismo, ver este cartaz postado pelo Daniel Scola, da Rádio Gaúcha, me fez refletir superficialmente um pouco sobre a relação jornalismo x crise:

Chamou minha atenção a expressão “jornalismo eletrônico”. E isso falado lá por meados da década de 70, quando a televisão, dizia-se, estava em vias de acabar com o rádio, meio então mais consagrado por informar a população.

Não acabou, como todos sabemos. O rádio, desde essa época, adaptou-se. E segue uma nova era agora, com muitas emissoras AM levando seu conteúdo para a FM, onde a música já não é necessariamente o principal conteúdo oferecido. Com a profusão da internet, que não matou a TV, vivemos uma época que temos muitos acordes ao nosso alcance, afinal.

alina

A redação | Foto: Alina Souza/Correio do Povo

Pra quem não conhece, o Atualidade é um programa onde jornalistas de diferentes veículos e meios da RBS participam. Não deixa de ser uma atração de mídia convergente, tema da minha monografia de graduação em jornalismo em 2008. Tratei o assunto como uma grande novidade, pegando o caso de uma cobertura multimídia na web.

Porém, como bem se vê, já existia o “jornalismo eletrônico” havia décadas. Em quatro anos de faculdade ainda vi outras tantas expressões: “fotojornalismo”, “jornalismo cidadão”, “telejornalismo”, “jornalismo gonzo”, “jornalismo digital”, “jornalismo literário”, “jornalismo de dados” etc.

Há uma constante, nota-se. E mesmo com redações mais esvaziadas e a digitalização de processos, o jornalismo continuou – e continua. Menos gente pode significar mais trabalho, mas também mais responsabilidade àqueles dispostos a fazer um bom jornalismo (algo que nem todos os profissionais estão dispostos e, sim, dá trabalho!). Esses, tenho certeza, seguirão existindo independente da tecnologia que vier.

Muitos jornalistas têm medo que uma tecnologia arrasadora faça voar forte o passaralho. Mas o jornalismo vive nesta crise. Há décadas ele segue aí. E seguirá.

O lado oculto do fio da meada

blocoA grande ideia surge, mas logo agora? “Isso é brilhante”, penso, numa recente empolgação. Mas a caneta some, o computador nem ligado esteve. O escasso tempo passa.

Não fica nem um rabisco que contaria aquela história. Ou talvez uma palavra, no máximo uma bifurcação obscura que leva a um pântano de palavras desconexas.

E então encontra-se a dúvida: para onde vai a inspiração para os textos que a gente esquece?