Sobre abraços e sociedade

Tem na minha carreira como jornalista dois abraços que considero inesquecíveis. Eles são separados por cinco anos, ocorreram em redações e momentos completamente diferentes. Mas, dei-me conta nesta semana, têm algo em comum.

O primeiro deles foi numa noite fria de junho de 2017, no Correio do Povo. Era véspera de um feriadão às portas do início do inverno. Corriqueiro pr’aquela noite talvez fosse termos atualizações de movimento de estrada, coisas assim. Só que não foi o caso.

No início da noite, a Brigada Militar cumpriu ordem judicial para a desocupação de um prédio no Centro de Porto Alegre – o qual, ao menos até pouco tempo atrás, seguia vazio. Foram cerca de 200 pessoas de 70 famílias, que lá estavam havia mais de ano, colocadas para fora. À noite, em véspera de feriadão e no frio crianças testemunharam a brutalidade da força do Estado no cumprimento de uma decisão judicial.

Foram horas tensas, com sirenes, incertezas e violência até que tudo enfim fosse apaziguado à força. Escalada para cobrir pelo jornal, eu lembro como a repórter, ainda jovem, voltou para a redação do CP: olhos esbugalhados, falando sem parar, assustada. Um tanto dela queria passar mais informações, um tanto queria desabafar, porque o jornalismo é, ao fim, uma ciência humana.

Eu já era editor, mas a única coisa que lembrei de oferecer na hora para ela foi um abraço, prontamente recebido depois de ter testemunhado tudo aquilo a poucas quadras do jornal. Ela precisava de alguns segundos de calma. Certamente eu também.

O outro abraço que não vou esquecer foi na minha colega do Matinal, minutos após a vitória de Lula nas eleições 2022. Um abraço com olhos marejados, emocionado, como quem começa a acordar de um pesadelo que foi (ainda é, em tese) o governo Bolsonaro. Um abraço de esperança em meio a tempos sombrios em tantas áreas sociais.

O fio que liga essas duas cenas passa pela atuação da polícia militar. A mesma corporação que protagonizou cenas fortes em 2017 é a que pediu gentilmente – e descaradamente foi ignorada – a manifestantes cuja pauta golpista e antidemocrática sequer é escondida sair do lugar em que estavam.

A questão não é defender o emprego da violência ou de uma mera conivência. Mas, entre esses dois abraços, eu fico me perguntando o porquê de agir de formas tão diferentes. E, nesta reflexão, eu não posso ignorar contra quem eram os mandados, que cor tinham os manifestantes em questão nos dois eventos.

Situações como essas escancaram que ainda temos um longo caminho enquanto sociedade para trilhar, um racismo estrutural para combater e uma cidade mais justa para construir. Que nos dê mais motivos para abraços esperançosos do que de abraços de consolo. Não vai ser com ares de injustiça ou movimentos antidemocráticos que chegaremos à ela.

Clandestino na própria cidade

Foi como começar de novo. E, num ato banal que hoje me exige uma dose de coragem, suspirei e decidi seguir em frente. A cena que outrora foi tão corriqueira até ganhou um contexto levemente épico. Coloquei o capacete, subi na bicicleta. Apertei o botão: abri o portão e me fui cidade afora.

A paisagem que era tão comum ganhou o que pareciam contornos novos. E, como se reconhecesse a um amigo, passei a procurar detalhes rua a rua a partir do bairro Auxiliadora num caminho sem destino pelo cenário que por anos foi somente parte do trajeto casa-trabalho-casa.

Na via mais esvaziada gente, agora há mais traços. Do que se foi e do que será. Detalhes de como andou a vida nesses meses atípicos de medo do invisível. Sinais das transformações que virão daqui para frente. As casas têm mais gente agora, enquanto as ruas, mais pedidos por ajuda, no que parece ser uma faceta desses novos tempos.

Porto Alegre é uma cidade que tem um coração verde. Chama-se Parque da Redenção. É para lá que confluem as diferentes faunas de gentes da capital gaúcha. Seus cantos e bancos, se falassem, teriam o cotidiano das ruas na ponta de suas línguas. Estar lá é, afinal, estar em Porto Alegre.

Muitas e muitas vezes já sentei em qualquer banco ali, em variados momentos e com tantos e tantos tipos de companhia. Agora, contudo, estava só e clandestino, mesmo em plena tarde agradável de sol. Em tempos de regras de isolamento, talvez o certo seria não estar ali. Quieto, observo o vem e o vai daqueles poucos que, como eu, circulavam em tempos pandêmicos.

Olhando ao redor, tentava reconhecer a alma daquele lugar que frequento desde criança. Sob a sombra das árvores, notei apenas que não haverá nada normal enquanto a Redenção estiver esvaziada em tarde de sol por conta de algo que, dia após dia, nubla ou apaga a tantos nas redondezas. Tem, sem dúvida, um clima um estranho no ar.

Retomei o caminho de volta prestando atenção às novas mensagens de muros, as que deixei de notar nos últimos meses – no último ano (!). O que será que eles poderiam contar depois de meses sem vê-los? Em meio a tapumes, havia protestos: “Bolsocaro”, diziam uns cartazes na avenida, enquanto em outro muro, o picho exclamava, em plena perimetral: “O Brasil não merece o Brasil”.

Parei por um minuto. Achei que ele tinha razão.

*Crônica feita para a aula do curso de extensão Cartografias da Cidade, da PUC-Rio

BikePoa ou Yellow?

bike poa yellow

Porto Alegre tem mais uma opção de aluguel de bicicletas. Além do já famoso BikePoa, da Loop, desde esta semana há a Yellow circulando por Porto Alegre. “Por Porto Alegre” ainda é forçar um pouco. O serviço, num primeiro momento, opera apenas nos bairros entre a Cidade Baixa e o Moinhos de Vento. Mas há planos de expansão.

Aviso: a pauta das bicicletas tem sido meio recorrente por aqui. E provavelmente seguirá.

Usuário frequente do BikePoa há anos – e mais recentemente desde a greve dos caminhoneiros – testei a Yellow em seu segundo dia em Porto Alegre. Essas linhas aqui tentam diferenciar um pouco cada uma. Que lhe seja útil, caro(a) leitor.

yellow mapaBueno, entende-se na primeira pedalada porque a Yellow atua em uma área mais restrita – começaram rodando em apenas 12 km² da Capital. As amarelinhas não têm marchas, porém elas compensam no peso. São sensivelmente mais leves que as laranjinhas, o que potencialmente reduz o uso de força em subidas.

Logo, a Yellow funciona bem ao que se propõe: a “micromobilidade”. Ela até pode, mas o objetivo dela não é levar o usuário de um canto a outro da cidade. E sim atuar na “última milha”, ou seja, de casa ou trabalho até o modal mais próximo. Isso a um preço relativamente barato: R$ 2 para cada 20 minutos de uso. É possível carregar via cartão de crédito ou comprar passes em estabelecimentos parceiros.

Usei a proposta da Yellow na minha primeira pedalada. Peguei uma bike a duas quadras da minha casa e fui com ela até o modal seguinte, que, casualmente, era outra bicicleta, mas do BikePoa, cuja área iria vai até o meu local de trabalho. Em 17m46s, andei 3,1 quilômetros. Gasto total da viagem: R$ 2, menos da metade do custo da tarifa de ônibus. A empresa propõe uso por tempo ilimitado das bikes, ao contrário das concorrentes. E autoriza o usuário a retirar a bici a qualquer hora do dia e não tem estações.

bike poa mapaJá o BikePoa conta com 41 estações para retirada e entrega de bicicletas. Elas são mais robustas na comparação tanto com a Yellow quanto com a Loop. E o mesmo modelo – feito para ser de aluguel – é utilizado em diversas outras cidades, como Nova York, Londres e Buenos Aires. Mais resistente – e com três marchas – garantem maior conforto a trajetos mais longos.

A área de atuação do BikePoa é maior também, ainda que muito concentrada nos bairros da região central, não atendendo assim parcela considerável da população. Para pegar as bikes, o usuário precisa ter um plano (diário, mensal ou anual), que na sua versão mais barata pode sair por cerca de R$ 13 por mês, caso opte-se pelo plano anual parcelado em 12 vezes. Logo, fica menos de 50 centavos por dia.

Quem pega a bike, precisa devolvê-la em até uma hora, de maneira prorrogável pelo aplicativo. Mesmo que não tão comum, há a chance do inconveniente de não encontrar vaga em estação para devolver. O perrengue, neste caso, só é maior para quem precisa devolver nos extremos do mapa, no Parcão ou no Iberê Camargo. Nesses casos, além da pedalada, o usuário ganhará pelo menos quase um quilômetro de caminhada.

Enfim, fevereiro de 2019 e Porto Alegre conta com três serviços de aluguel de bicicletas, algo que cresceu bastante de dois anos para cá. (Há também a Loop, a qual nunca andei até aqui.) Existe ainda uma grande área para esses serviços se expandirem para que possam dizer que atuam de forma a atender a maioria da população. Quatro bairros com mais de 40 mil habitantes passam longe do bikesharing, por exemplo.

Concentrando-se demasiado numa região e sem planejamento, correm o risco de tornarem-se concorrentes a ponto de prejudicarem a cidade – que ocorre quando há um crescimento desenfreado da oferta sem demanda.

No entanto, os três serviços abrem a possibilidade de se interligarem como modais, além de ajudar a economia, através dos entregadores “bikeboys” de serviços como Uber Eats. É um impacto que tende a ser positivo para a cidade, mas mobilidade sempre exige planejamento.

O Palhaço

palhaço transito

Fato 1: a nota de vinte reais é amarela e com um macaco no verso. Está do centro para cima na hierarquia do bilheteiro brasileiro, mais valiosa que as de dois, cinco e dez reais e inferior às de cinquenta e cem. E como quase todas as notas de real, pouco é vista na minha carteira. Tal como alguém entre a geração Y e Z, adaptei-me sem maiores dificuldade ao conceito abstrato de dinheiro, no qual ele é não mais que um número que diminui toda vez que uso um cartão de plástico com chip e sem bicho algum desenhado.

Cena 1: trabalho no centro de Porto Alegre. E praticamente todo o dia, em um determinado cruzamento, a mesma pessoa está lá, jogando seus malabares para cima na esperança de arrecadar, de moeda em moeda, sua sobrevivência em uma capital onde a renda per capita é de R$ 1.877 – terceira mais alto do país, segundo o IBGE. Na luta pelo ganha-pão, ele ressalta um diferencial: veste-se (vestia-se, a bem da verdade) de palhaço e sempre começa suas apresentações com gritos de “alegria, alegria” seguidos de alguma piadinha em algum motorista que demonstre atenção. A aposta, além do malabares, é na simpatia para angariar fundos no escasso tempo de uns 25 segundos que a sinaleira permite.

O Palhaço é daqueles anônimos que se vê todos os dias em meio à rotina. Para mim, ele é integrante do cotidiano naquela fração de tempo e hora. Da mesma forma que uma senhora que vendia doces em outra esquina – que ela nunca soube, mas sempre me passava algo de bom em seu olhar. Ou como antigamente era outro senhor que vendia churros na hora saída do colégio em que eu estudava. Enfim. São pessoas, cada uma com suas vidas, mas que, para nós, enquadram-se num determinado momento. Sabemos e saudamos suas existências, porém não mais que superficialmente.

A esquina onde o Palhaço trabalha é minha rota em seis dos sete dias da semana há cerca de três anos – ainda que ele trabalhasse numa transversal antes, que anteriormente era meu caminho. Ou seja, ele existe para mim há quase meia década.

Sempre nos cruzamos pelo fim da tarde. Não é constante, porém. Tem dias em que pego a sinaleira aberta e passo a 40 km/h ali. Tem outros que acabo parando num canto e não sou notado. Em outros eu lembro de alguma moeda no meu bolso ou alguma roupa para doar e o chamo, rápido. E sigo. E vou. Ele fica. Cada um com sua labuta. Cada um com sua vida.

Mas aconteceu no inverno passado algo cotidiano, mas fora da rotina. O encontro do fato 1 com a cena 1. Seria corriqueiro se fosse fim da tarde, só que o relógio marcava depois da meia-noite. Quase não tinha mais carros ali. Todavia ainda havia o Palhaço e seus três malabares verdes. Gritando um insistente “alegria” a esmo, ao vazio. O eco do seu grito escancarava a dificuldade que deve ter sido aquele dia, certamente de féria escassa.

Parei e troquei umas palavras de consolo. Cheguei a seguir, entretanto parei metros adiante ao lembrar daquele artigo raro para a minha carteira. Dei meia volta e retornei àquela esquina. Foi a primeira vez, então, que conversamos além do tempo da sinaleira. Despiu-se o Palhaço e surgiu o homem, cansado e doente – alguma coisa em seu olho que o fez até errar o malabarismo antes. Em seguida, entreguei os vinte reais para ele, que expressou um sentimento entre o alívio e a felicidade. Pelo jeito, a grana para pagar a diária do hotel em que ele contou viver, finalmente estava garantida.

Meses se passaram. Por um tempo esteve ausente e cheguei até a me preocupar, porém ele voltou faz alguns dias. Desde então, a gente segue se cruzando quase que diariamente. Hoje, no entanto, sou reconhecido. Ele aponta para mim, como se me apresentando aos outros motoristas e diz algo como “meu amigo”, “meu parceiro” e me cumprimenta na sequência, aí respeitoso.

O irônico é que ele é uma das figuras prediletas do meu cotidiano, mas nem sei seu nome – e tampouco ele sabe o meu. Pouco importa. Ele é meu amigo também. E me deixa feliz com a sinceridade usada ao falar “satisfação” ao me ver e “fica com Deus” quando arranco e me vou.

Num mundo de tanta rede social, tanta correria e desinformação, às vezes faz bem conhecer melhor o cotidiano da nossa rotina.

 

ps: na foto que ilustra este texto, ele veste uma camiseta que doei para ele no fim do ano. “Reconheceu?”, ele me perguntou dias depois. “Serviram todas muito bem”, me contou, já informando o sucesso sobre as outras duas peças que havia lhe entregado.

A aula da vila

Leonam por Lenara Pothin

Leonam | Foto: Lenara Pothin / Famecos

O Mestre Leonam foi de longe o melhor professor de jornalismo por características únicas, marcantes e singulares. Leonam tem o dom de cativar um jovem a ser um bom repórter por meio de sua oratória singular. E não raro suas aulas tornavam-se marcos na formação de profissionais. Por serem únicas, algumas grudam na memória.

Uma dessas aulas era a que ele apresentava o trabalho de ir à vila. Qualquer uma. Ele pedia isso a alunos de classe média alta, na maioria brancos e, logicamente, frequentadores de uma universidade privada de Porto Alegre, cuja mensalidade, já naquela época, era mais cara que o salário mínimo atual, de 2018. A capital, como tantas outras, jogou suas vilas e favelas para áreas mais periféricas da cidade, não tão próximas àquela sala de aula onde Leonam passava conhecimentos. Ou seja, para muitos alunos ali, não era uma paisagem conhecida.

Eu já tinha ido a algumas vilas, mas não podia dizer-me um conhecedor – e tampouco posso dizê-lo hoje. E cumprir o desejo do mestre de “ir a uma vila, sem pauta, para fazer uma matéria” era considerado um pouco excêntrico. “Precisa mesmo?” Quando ele sugeriu, houve algum resmungo em resistência. Nada, porém, que superasse a lábia do Leonam. Ao fim da aula, mesmo que fosse 22h30, eu iria naquele momento para cumprir o que me fora pedido.

Claro que não fui na hora. Embarquei rumo à Vila Cruzeiro, uma das mais perigosas de Porto Alegre, uns dias depois. Já sem a coragem do momento, admito que pedi companhia/escolta ao meu ex-padrasto – um negro e conhecedor de muitos recantos da capital gaúcha. Foi, ao fim, desnecessário. Entrei por algumas vielas, entrevistei umas pessoas e voltei pra casa são e salvo logo depois.

A matéria da vila foi inesquecível. Não por ser boa e sim pela didática da reportagem. Naquele momento experimentei o confronto que o jornalismo propicia. Ouvi versões antagônicas de quem esperava por atendimento em um posto de saúde e de quem não pode atender melhor. Apesar do objetivo mútuo, ali havia um forte confronto de versões. Reportei da melhor forma que considerava possível então. Nem lembro da nota, mas ganhei um elogio digno de colocar em um quadro: “Isso não só mostra o domínio da linguagem jornalística como a presença de um repórter a serviço da cidadania”.

A aula do Leonam era sobre jornalismo, visava formar repórteres. Mas poderia ser justamente aquilo, de cidadania. Fazer gente de classe alta colocar o pé na terra da rua esburacada de uma vila, onde a maioria das famílias se sustentam com míseras centenas de reais, deveria ser uma pública. Desvendar o que há atrás dos muros das avenidas, a realidade crua de milhões de brasileiros nos tornaria melhores cidadãos. Vivemos num país com demandas importantes há anos. Só que a maioria delas está distante dos centros das cidades. Sem esse conhecimento, pouco a pouco, tornamo-nos insensíveis à nossa própria realidade de cidade, estado e país.

Apesar de ter o conhecimento na palma das mãos, falta-nos, enquanto brasileiros de classe média e alta, vivência com a dificuldade para nos enxergarmos como sociedade. Existem diversas desigualdades a serem corrigidas para que, assim, o Brasil possa crescer como um todo – e não como uma geringonça onde quase 30% de toda a riqueza do país está nas mãos de 1%.

É preciso conhecer o Brasil de verdade.

Desde o âmago

this is america

Teve uma vez que insisti muito para uma colega que quase nunca saía à noite nos acompanhar em qualquer uma das nossas incursões noturnas em Porto Alegre, na época de faculdade. Certa feita consegui. Logo que a gente se encontrou, perto do bar que iríamos, um cara desceu da moto numa cena que não esqueço. Não deu outra, fomos assaltados.

Coincidência infeliz, é claro. Ela praticamente nunca saía e perdeu a bolsa assim que o rapaz mostrou a arma. Do grupo que estávamos, mais alguns perderam celulares e carteiras na ocasião em que a nossa noite havia terminado antes mesmo de começar.

Fiquei muito mal, obviamente. Ainda que fosse tão vítima da situação, sentia-me de alguma maneira culpado, pois havia passado os dias anteriores gastando argumentos para levar minha amiga ao tal bar – que por sinal fica em bairro nobre da capital gaúcha, o que nos daria a sensação de maior segurança.

Nos dias seguintes, uma mescla de culpa e medo com raiva e ódio – que eu não estava acostumado e mesmo hoje não costumo nutrir – cresceu dentro de mim. Aquela lamentável cena voltava à memória em pequenos intervalos. Até o ápice acontecer num sonho, poucos dias depois. Nele, o ladrão estava vencido e ajoelhado. Eu, justiceiro, tinha uma arma na minha mão e disparava em sua cabeça, como se aquilo fosse o meu papel, o que deveria ser feito. Eu, um assassino.

Acordei assustado. Felizmente meu eu consciente sabe que aquilo não era a solução e só de pensar em ter protagonizado tal situação, apesar de só em sonho, já me fazia mal. Com ajuda do espiritismo, foi uma concentração e tanto nos dias seguintes para reverter aquela vibração e tocar a vida em frente. Vão os anéis, ficam os dedos, afinal.

Superado o episódio, de lá pra cá, raríssimas vezes lembrei disso. Até esta semana, quando tentaram matar Jair Bolsonaro. E um atentado contra uma figura como este deputado nos coloca em xeque. Pelo pronome, nota-se que me junto aos 44% do eleitorado que o rejeitam, em oposição a muitas de suas ideias, especialmente a “solução” de combater violência com ainda mais violência.

A facada em Bolsonaro, em quase ato contínuo à cena em que ele defende “metralhar petralhas”, faz um “bem feito!”, um “merecido!” subir à garganta de muitos que estão na sua oposição. Em diversos casos, essas exclamações não foram contidas, chegando a virar decibéis ou pixels em postagens redes sociais afora.

É a senha para se juntar àqueles contra quem estamos contra. A vitória da intolerância e do ódio sobre o diálogo em período eleitoral. Quase um retorno aos tempos do Código de Hamurabi.

Acreditar em encenação, num primeiro momento, ou simplesmente desejar que alguém que tenha ideias diferentes ou mesmo que tenha feito o mal morra desta forma bruta, é uma derrota, antes de tudo, interna. Dá triunfo a nossa pior face.

Nesses tempos complicados e cheios de ruído é preciso concentrar-se e manter coerência do que se fala e se defende com o que pensamos. E isso começa em nosso âmago. Não é fácil, mas esta luta precisa ser pacífica ou nosso radicalismo só nos jogará ladeira abaixo.

#diáriosdocaos

Na greve, teve bici | Foto: Brayan Martins / PMPA

Foi na quinta da semana passada, quarto dia da greve dos caminhoneiros. Vi a minha impressão sobre o movimento ser furada ante uma paralisação que parecia ganhar mais força a cada dia diante de um governo enfraquecido e acuado. Derrotada minha avaliação, peguei a minha moto e saí por Porto Alegre atrás de míseros três ou quatro litros de gasolina para não ficar a pé. Após ver uma que outra plaquinha escrita “sem combustível” e diversos dedos indicadores de frentistas indo para um lado e para o outro no ar, voltei para casa. Resignado, com o tanque no fim da reserva e sem uma gota de gasolina a mais.

Apesar de estar relativamente tranquilo, o ambiente ao meu redor era de um cenário pré-apocaliptico. Já havia notícias pipocando de imensas esperas (e inflação) nos últimos postos com gasolina e etanol à disposição e filas homéricas nos supermercados que começavam a ficar sem estoques de alguns produtos – e aproveitando para lucrar um pouco mais com o que ainda havia à venda.

Resolvi entrar no clima, então, e iniciei uma série batizada de um carinho irônico-moderno #diariosdocaos. Como, enfim, aquela greve afetava de fato a minha vida.

A bem da verdade, apostei mais alto. Mesmo que tenha que perdido gasolina e ficado a pé, segui acreditando de que a greve não duraria tanto a ponto de me deixar também faminto em casa – o que não chegou nem perto de acontecer, porém ovos e omeletes desapareceram da cozinha lá de casa.

O que mudou de fato foi a logística. Uma mudança de hábito que preferi encarar com a melhor das boas vontades. Os 15 minutos de moto para chegar ao trabalho transformaram-se em 30 de caminhada somada a uns 22 de bicicleta, pelo sistema BikePoa.

Dia a dia, somei – e como bom nerd, tuitei – todos os percursos em que substituí a tração do motor pela animal – no caso, minhas duas pernas. Oito dias se passaram, com 35,1 quilômetros caminhados e 27,2 pedalados (antes de procurar a calculadora: deu 62,3 quilômetros, ao todo). Apesar de sensivelmente mais cansado à noite, não foi nenhum sacrifício maior do que perder horas do meu dia numa fila monstruosa e estressante por… gasolina.

Fui voltar ao posto só depois de ter certeza de que não ficaria dezenas de minutos por ali:

Com a situação já se encaminhando para a normalidade, e com dinheiro do SUS indo para o diesel, concluo que a reocupação da cidade por pessoas, bicicletas (e até cavalos, em alguns casos) talvez tenha sido a melhor parte desta greve para quem não é caminhoneiro. Redescobrir caminhos e detalhes de uma cidade a qual estamos acostumados a ver só pela janela ou, no meu caso, atrás de um capacete.

Claro que não posso sobrepor a minha realidade a outras. Eu tive essa opção de poder caminhar e pedalar, porque moro a uma distância não tão longe do meu destino diário e num horário ok. Para muita gente, isso não foi uma opção e o que restou foi um ônibus lotado e atrasado. (A essas pessoas, um convite para debater uma mobilidade urbana sem o uso de combustíveis derivados do petróleo)

Ainda assim, apesar de alguma dor no joelho ou cansaço nas pernas, a greve me deixou uma satisfação de ser incapaz de me prender ou obrigar a desperdiçar o já escasso tempo livre em locais indesejados, muito antes pelo contrário. A falta de combustível acabou sendo um convite para reencontrar a minha cidade.

E que saudade eu estava de Porto Alegre.

Guerra de gritos e versões

greve jose cruz

Foto: José Cruz / ABr

Pouco mais de um ano atrás usei a metáfora da banca e do menino jornaleiro para tentar explicar um pouco das diferenças entre trabalhar com Facebook e Twitter em uma redação de jornal. Para quem não leu, basicamente a comparação era esta: o Facebook é como uma banca, com um sem-fim de conteúdo oferecido, enquanto o Twitter é aquele jovem gritando a manchete com um “extra”.

Retorno e amplio a metáfora depois deste 28 de abril de 2017 turbulento tanto em ruas de diversas cidades de todos os estados brasileiros, quanto nos smartphones e computadores. Uma verdadeira guerra de versões. Ou se era “vagabundo” ou “trabalhador”, com pouco espaço para meio-termo. Praticamente nada de debate ou discussão que valesse a pena.

A banca do Facebook estava superlotada. “CarnaLula”, “Lula na cadeia” confrontavam quem alegava luta por direitos e firmava críticas às reformas trabalhista e previdenciária. O menino do Twitter ficou rouco de tanto gritar tanto mensagens como #GreveGeral quanto #AGreveFracassou. Motivado por uma esperança de feirante, de que, quem gritar mais alto, leva.

Se a internet democratizou a informação, também o fez com o ruído e a propaganda seja do que lá for, inclusive a mentira. Isso não é novidade. Mas, talvez, em casos como o de hoje, o que convém seja a reflexão, o momento de lembrarmos que temos dois ouvidos e apenas uma boca.

Há verdades em ambos espectros políticos, em diferentes versões. A gritaria e o esperneio das redes sociais certamente não é as tornam o melhor local para se refletir e formar uma opinião embasada – o que, na teoria, é o que se busca numa discussão.

A banca do Facebook e o jornaleiro do Twitter, provavelmente na maioria dos casos, foram tomados por gente mais interessada mais em denegrir quem se é contrário do que de fato debater quaisquer ideias. Um novo e triste round do confronto Petralhas x Coxinhas.

Nunca um bom jornalismo foi tão importante, porém quiçá nunca, em tempos recentes, tenha sido tão raro. É preciso olhar para mais lados antes de sair gritando suas verdades.

greve-geral

Convém não ignorar | Foto: Mauro Schaefer / Correio do Povo

ps: talvez motivado pelo discurso bélico das redes sociais, o governo inicialmente manifestou-se minimizando a greve geral. Lembrou a gestão anterior, que também desprezou os primeiros protestos contra. Da mesma forma que petistas acusavam as manifestações de 2015 de ser um movimento elitista, os atuais ocupantes da Esplanada dos Ministérios taxaram de fracasso os atos ocorridos em todo o Brasil nesta sexta. A cegueira custa caro.

 

O mundo é sempre maior que a nossa opinião

mundo

O mundo é bem maior do que qualquer reprodução

Uma pequena continuação do post passado, talvez com ideias mais claras. A questão dita ali não é censurar a opinião, mas não deixar-se enganar pelo espectro da própria convicção. É necessário buscar a maior clareza possível, sempre, principalmente quando se fala a pequenas multidões, como são (ou eram) os leitores de jornais.

Por exemplo: dias atrás um colunista daqui de Porto Alegre escreveu que sua meta de vida é trabalhar até os 100 anos, que seu pai ou avô também labutaram terceira idade a dentro. Alcançá-los será motivo de orgulho ao jornalista com fama de intelectual na praça e espaço garantido a propagar suas opiniões desde uma redação ou estúdio com ar condicionado, sem falar no salário pago em dia e dos mimos do cordel dos puxa-sacos.

Neste assunto, mais recentemente, a revista Exame tentou emplacar uma comparação com Mick Jagger (!!) exemplificando como pode ser “ótimo” desde que haja preparação para isso. Uma matéria que deve ter lá seu mínimo embasamento, mas que soa muito mais como publicidade do governo da hora do preocupação com o bem-estar geral. Ainda mais se considerar a mudança editorial em cinco anos:

Não há nada de errado trabalhar até quando for possível, ignorar a aposentadoria. Porém acatar esse pensamento como majoritário acaba por demonstrar uma ignorância imensa da cidade, Estado e país em que se vive, onde trabalho, talvez na maioria dos casos, não seja sinônimo de prazer e sim de obrigação.

O Brasil – que já foi muito mais desigual, é verdade – é um país cuja média salarial não chegava a R$ 2,5 mil em 2016, com possível tendência de queda devido à recessão. Nas duas maiores capitais do Nordeste, essa média não chegava a R$ 1,7 mil. E só aqui estamos falando de 4 milhões de pessoas.

Tais números apenas para a questão ficar na esfera econômica. Há uma série de outros fatores, como esforço (e lesão) físico e exposição a riscos, que facilmente podem ser ignorados se o dito articulista – trabalhe ele em jornal ou não – mantiver-se concentrado apenas no computador à sua frente enquanto pensa qual ideia tornará pública a seguir.

Fará bem a eles (e seus leitores) perceber o quão grande é o mundo e suas diversas realidades. Muito maior que quantidade de likes, RTs e compartilhamentos que qualquer post. E bem maior que qualquer opinião de gente que não lembra a última vez que andou de transporte público na própria cidade no horário de pico.

ps: talvez seja bom para o contexto lembrar que vivemos num mundo onde oito pessoas têm a mesma riqueza que outros 3.600.000.000 seres humanos.