Aprendizado

Certa feita publiquei um texto refletindo sobre os meus primeiros cinco anos como profissional. Foi uma crônica de desencantamento, um pouco sobre como sair das nuvens embriagantes de uma formatura para colocar o pé no chão nos desafios diários de uma redação de jornal. Lembrei dessas palavras nesses dias dezembristas, em que passamos a régua no que fizemos de bom e de ruim nos últimos 12 meses.

Se naquela oportunidade eram cinco anos enquanto formado, hoje estou perto de completar o primeiro quinquênio na dita “imprensa alternativa” ou “independente” – adjetivos que, admito, não gosto muito, mas que normalmente vêm colados à Matinal, quando esta é mencionada. São complementos que, não raro, soam até como elogiosos ao trabalho feito ali e não na “grande mídia”.

Neste caldo de pensamentos analíticos, também percebi que estou próximo de completar o primeiro ano na condição de mestrando. É algo que jamais havia projetado na minha carreira, em especial em outra área de formação, o planejamento urbano. E é algo que sempre me impõe a condição de mero aprendiz, desconsiderando boa parte da trajetória que tive até ali.

Somando as duas condições, fico feliz de reparar que entrarei em 2024 com um olhar cada vez mais crítico a respeito do que se passa ao redor, na pauta e nas ruas. Uma crítica sobre o que é e pode ser notícia, uma crítica sobre como ela deve ser relatada e publicada no seu caminho até o leitor, até o cidadão.

Hoje, dou um viva à implicância com certos termos que por muito tempo me passaram batido, como uma palavra ou sinônimo qualquer. Faço careta e descarto outras tantas palavras que se disfarçam de inocentes, mas cujos significados importam e impactam bastante à pauta e a quem as diz respeito. Talvez isso se chame experiência, o que não deixa de ser um processo de aprendizado.

Desde aquela reflexão sobre os cinco anos de carreira, lá se vai praticamente uma década. Entre tantas outras desilusões e festejos que se somariam àquele texto, é bom se perceber ainda com capacidade de aprender e, mais, de estar disposto a isso. É o que vejo como a minha contribuição. Pouca, claro, irrisória no cenário em que estou. Mas um pontinho a mais disposto a fazer um jornalismo melhor.

Trajetórias

“Daqui a dez anos eu quero estar trabalhando numa agência e ganhando R$ 10 mil por mês.” Ouvi essa frase ali por 2008, de uma colega publicitária, que assim como eu estava às vésperas de se formar na faculdade. Eu creio que guardei na memória essa frase por achar que ela continha uma ousadia expressiva para uma formanda (se R$ 10 mil hoje ainda é um bom salário, naquela época era uma fortuna), mas também por ecoar em mim – às vésperas de virar um profissional diplomado – a total falta de planos que tinha para o meu futuro.

Ok, “total” é meio exagerado dizer. Mas a verdade é que nunca fui de fazer planos a longo prazo, embora seja capricorniano-permanentemente-pé-no-chão – ou talvez seja exatamente por isso, enfim. Findada a faculdade, eu queria trabalhar, reportear romanticamente a pauta que viesse, onde que fosse e imaginando que, mais cedo ou mais tarde, chegaria à RBS para trabalhar na Zero Hora. Esse era o sonho fomentado pela Famecos daquela época. Antes, por razões pessoais, queria trabalhar no Correio do Povo.

Bem, realizei só a parte do CP. E lembro com carinho da vez que mostrei para a minha avó, em seu último ano de vida, meu nome impresso naquele jornal que ela assinou durante décadas. Com a parte da Zero Hora nunca se realizando, apesar de chegar a estar próxima algumas vezes, fui ficando na Caldas Júnior por tempos a fio, até completar 12 anos de casa. Saí para um lugar que sequer existia naqueles idos de 2008. Saí para um jornal que ajudei a fundar, veja só.

A Matinal completa neste 21 de setembro mil edições, enviadas ao longo de pouco mais de quatro anos e meio de trabalho. Presente na confecção da maior parte delas, sou, dentre os três que criaram esse projeto em 2009, o que restou no dia a dia da produção desta newsletter. Enquanto o Paulo Antunes resolveu olhar jornalismo por fora, o Filipe Speck ascendeu a diretor do que hoje é a empresa Matinal.

A efeméride me fez retornar àquela conversa com a minha colega. Passaram-se mais que dez anos, eu não ganho R$ 10 mil mensais, sigo sem planos profissionais plenamente estabelecidos para o futuro, ainda que agora possa contar com alguma tranquilidade advinda da experiência, essa coisa que se conquista com o passar dos anos.

Hoje tenho algo para me orgulhar. Algo maior do que a aspiração de emprego ou alto salário desejado de formando. Ajudei a criar um veículo relevante para a minha cidade, que nasceu da inquietude e da disposição de três e, logo depois, tomou forma e se consolidou com a ajuda de muitas outras mãos de competentes profissionais que estiveram ou ainda estão ao nosso lado.

Pode não ser R$ 10 mil, pode não ser o emprego dos sonhos. Mas é uma história e tanto. Que seja uma longa trajetória.

Como eu cheguei até aqui


(foi de bike, mas com muita reflexão também)

Prefácio
Teve uma vez que, empolgados com qualquer coisa, eu e o meu primo Gustavo saímos pedalando da casa dele, no Cristal, até a casa da nossa avó, no Menino Deus. Encaramos as ruas, subimos e descemos ladeiras. Enfim, chegamos. Ainda mal adolescente, me ocorreu um pequeno estalo: então a bicicleta também pode ser um meio de transporte.

Capítulo 1
Na minha vida acadêmica e profissional, eu sempre estive à noite. Trata-se de um elemento presente e constante à minha vivência. A noite, tal qual o mar, é algo tão fascinante quanto traiçoeira. É bonita de se frequentar, mas sabe-se lá quais os perigos que se corre em uma empreitada mais profunda. Diverte, assim como exige respeito e impõe receio, conforme a hora passa – no meu caso 22h, 23h, meia-noite, 1h. Muitas das minhas voltas para casa, de moto, eram ágeis, ainda que não totalmente sem riscos ou completamente sem detalhes.

Capítulo 2
2018. E com ele, anos a fio de rotina começaram a ruir por conta da greve dos caminhoneiros. Nem durou muito tempo, foi questão de dias, mas mesmo assim teve gente que resolveu passar longas horas numa fila de posto de gasolina – um lugar que normalmente não gosto de ficar nem 5 minutos. Enquanto muitos precisaram ou queriam ficar perto dos motores de seus carros, deixei o veículo desabastecido na garagem e me fui a pé até a estação mais próxima do BikePoa. Bicicleta, afinal, também era um meio de transporte. Eu lembrei disso.

Capítulo 3
A experiência do ano anterior foi efêmera, mas deixou marcas, mesmo quando a normalidade foi retomada logo em seguida. E o destino me reservou, no ano seguinte, uma bicicleta velha, então esquecida na casa do meu pai. Apesar de algumas ferrugens aqui e ali e uns quantos dentes meio tortos, engrenamos um relacionamento sério. Logo resolvemos, eu e ela, encarar a vida – e a noite.

Capítulo 4
Superada aquela tensão comum no início de cada jornada, entrosamo-nos meses seguintes. E então a bicicleta fez então abrir novas percepções de ruas, bairros, praças, tensionamentos e questionamentos da minha cidade. Ao reduzir minha escala, me encheu de dúvidas e curiosidade, além da sensação de necessidade para não escrever errado – afinal, como jornalista, talvez aquilo que eu publico tenha um certo peso também na construção e no planejamento de uma cidade.

Pedalando, então, cheguei até aqui. Humilde em prédio alheio, disposto a aprender.


Em 2023/1, eu, jornalista, iniciei o curso de mestrado acadêmico em Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, da UFRGS – lugar onde tentei entrar mais de uma vez e não consegui ao longo de alguns anos. Não foi bem a imaginada porta da comunicação que se abriu para mim na universidade, mas a vida é abrir e desbravar novos horizontes, em novas escalas.

O exercício acima foi, talvez, o primeiro que fiz oficialmente enquanto aluno do mestrado. Apresentar-se contando uma história, na disciplina de Narrativas Urbanas. Diante de duas dezenas de pessoas desconhecidas, o que eu poderia contar? Resolvi explicar como eu, um jornalista, cheguei àqueles bancos acadêmicos.

Hoje, eu só trago versões

Em uma noite como essa, 14 anos atrás, fui diplomado jornalista profissional. Era um sonho realizado, concluindo a expectativa da entrada na universidade e posteriormente os anos de faculdade. Eu achei que estava pronto. Cinco anos mais tarde, revisitei aquele 9 de janeiro em outro texto, um dos que considero icônicos deste blog, e concluí: estava era bêbado de felicidade.

Não que seja uma especificidade do jornalismo, mas a vida se mostrou bem mais complicada no momento pós-academia do que quando se era estudante. A questão, porém, é que o Brasil mudou, e mudou rápido. A estabilidade civil e democrática que vigorou até a década passada talvez nos tenha deixado mais acomodado. O conta veio a partir de 2013.

Em paralelo, se acelerou uma nova dinâmica tecnológica e de comunicação. Terminei meus estudos em jornalismo num momento imediatamente anterior ao boom das redes sociais. O Tiago que saiu da faculdade mal tinha ouvido falar em Twitter e sequer imaginaria que aquela rede social contribuiria para um movimento como a Primavera Árabe de dois anos depois. Ao mesmo tempo, ele apostaria que tablet poderia ser um excelente modelo para a salvação dos negócios do jornalismo.

Influenciador? Esse termo só entrou no vocabulário da forma atualmente conhecida tempos depois. Eram tempos mais ingênuos e com o webjornalismo sendo o primo pobre e feio da imprensa, coisa para nerds ou recém-formados.

Felizmente, acho que aprendi um pouco ao longo deste período e datas como essas sempre servem para se fazer um balanço. Hoje, ao contrário de muitos colegas, posso dizer que trabalho num jornal, o qual tive a honra de ser um dos fundadores, em que realmente acredito. Que abre cada edição com a disposição de se fazer uma sociedade melhor. Isso é reconfortante.

Ainda assim, o jornalismo e o jornalista seguem em xeque. Semanas atrás escrevi um artigo em que provoquei “quem que dizia a verdade”, ainda no contexto das eleições de 2022. Creio que profissionais da minha área, de décadas atrás, não teriam tantas dúvidas para responder como eu tenho agora.

No texto, tangenciei a ideia e o termo, mas, em tempos como esses, aquela dúvida segue me martelando. “O que é a verdade?” Hoje, eu tenho 14 anos de jornalismo profissional, muitos erros e acertos nas costas, e já alguma experiência. E eu só trago versões do que, certa feita, foi a verdade. Versões e contexto.

Isso diante de um público cada vez mais convicto no que quer acreditar. Um público acostumado, para mal e para bem, à pós-verdade. Como noticiar para ele? Jornalistas e credibilidade não rimam, sequer combinam, para parte considerável da população.

Há, pela frente, enormes desafios pela frente para os jornalistas que se propõem a fazer um trabalho sério. Se tenho diversas críticas à formação que tive, guardo alguns mantras e aprendizados como tesouro. Um deles, do Mestre Leonam, frisa: “Repórter não pode ingênuo”.

Tenhamos olhos abertos, ouvidos atentos e sigamos.

Sobre abraços e sociedade

Tem na minha carreira como jornalista dois abraços que considero inesquecíveis. Eles são separados por cinco anos, ocorreram em redações e momentos completamente diferentes. Mas, dei-me conta nesta semana, têm algo em comum.

O primeiro deles foi numa noite fria de junho de 2017, no Correio do Povo. Era véspera de um feriadão às portas do início do inverno. Corriqueiro pr’aquela noite talvez fosse termos atualizações de movimento de estrada, coisas assim. Só que não foi o caso.

No início da noite, a Brigada Militar cumpriu ordem judicial para a desocupação de um prédio no Centro de Porto Alegre – o qual, ao menos até pouco tempo atrás, seguia vazio. Foram cerca de 200 pessoas de 70 famílias, que lá estavam havia mais de ano, colocadas para fora. À noite, em véspera de feriadão e no frio crianças testemunharam a brutalidade da força do Estado no cumprimento de uma decisão judicial.

Foram horas tensas, com sirenes, incertezas e violência até que tudo enfim fosse apaziguado à força. Escalada para cobrir pelo jornal, eu lembro como a repórter, ainda jovem, voltou para a redação do CP: olhos esbugalhados, falando sem parar, assustada. Um tanto dela queria passar mais informações, um tanto queria desabafar, porque o jornalismo é, ao fim, uma ciência humana.

Eu já era editor, mas a única coisa que lembrei de oferecer na hora para ela foi um abraço, prontamente recebido depois de ter testemunhado tudo aquilo a poucas quadras do jornal. Ela precisava de alguns segundos de calma. Certamente eu também.

O outro abraço que não vou esquecer foi na minha colega do Matinal, minutos após a vitória de Lula nas eleições 2022. Um abraço com olhos marejados, emocionado, como quem começa a acordar de um pesadelo que foi (ainda é, em tese) o governo Bolsonaro. Um abraço de esperança em meio a tempos sombrios em tantas áreas sociais.

O fio que liga essas duas cenas passa pela atuação da polícia militar. A mesma corporação que protagonizou cenas fortes em 2017 é a que pediu gentilmente – e descaradamente foi ignorada – a manifestantes cuja pauta golpista e antidemocrática sequer é escondida sair do lugar em que estavam.

A questão não é defender o emprego da violência ou de uma mera conivência. Mas, entre esses dois abraços, eu fico me perguntando o porquê de agir de formas tão diferentes. E, nesta reflexão, eu não posso ignorar contra quem eram os mandados, que cor tinham os manifestantes em questão nos dois eventos.

Situações como essas escancaram que ainda temos um longo caminho enquanto sociedade para trilhar, um racismo estrutural para combater e uma cidade mais justa para construir. Que nos dê mais motivos para abraços esperançosos do que de abraços de consolo. Não vai ser com ares de injustiça ou movimentos antidemocráticos que chegaremos à ela.

Terra ao longe, mar adentro

Não sei exatamente o que se passa. Logo eu, capricorniano tão construtor de raízes, vivo tanta inconstância nos últimos meses. Continentes, terra firme, tudo parece longe do meu barco, que hoje navega por entre ondas com alturas de desafio.

Olho para trás e os 12 anos de CLT em jornal tradicional já estão um tanto distantes. Já sou passado naquela redação. Hoje, o jornal que estou – que sequer com papel trabalha – já se mostra mais sólido, ainda que precise se provar toda hora para mostrar que veio, sim, para ficar.

Após anos de estudo em comunicação, agora frequento o prédio da Arquitetura. Debato sociologia e urbanismo com mestrandos e doutorandos. O que sou ali? Mero jornalista, sequer pós-graduando. Mas com a bola no pé e com bastante campo pela frente.

Não sei o que vai ser daqui a dois meses, daqui a um ano, nem dois. Às vezes parece que esse mar agitado faz voltar àquela noite de janeiro de 2009, em que recebi o canudo cantando Nei Lisboa, abrindo a estrada que chega aonde eu for. Sigamos, pois!

O Correio do Povo

Eu tenho uma lembrança do Correio do Povo que vem da tenra infância. Era esse jornal que chegava cedinho na casa dos meus avós, no Menino Deus, ali pela década de 1990. Já não era o Correião de outrora, e sim a sua versão atual e mais compacta que, pouco a pouco, estava reconquistando seu público pelo Rio Grande do Sul.

O Correio era – e ainda é – um jornal que os mais velhinhos preferem. Eu lembro que certa época chegaram a dar uma assinatura da Zero Hora em determinado momento para os meus avós. Eles sorriram amarelo, ficaram com o novo jornal pelo tempo de assinatura contratado para, em seguida, voltarem ao antigo.

Enfim, o CP sempre me foi uma memória infantil e ao mesmo tempo uma meta. Quando estudante de jornalismo, entrei todo sem jeito para uma pesquisa no icônico prédio da esquina da rua Caldas Júnior com a Andradas. Encantado. E encantamento também aconteceu quando me vi repórter de lá, a partir de setembro de 2009. Algumas vezes fiz um “uau” ao bater crachá lá e perceber o que estava acontecendo de fato era real.

Ainda deu tempo de mostrar uma matéria assinada minha para os meus avós. Foi bem legal para eles verem o meu nome na folha que tanto leram ao longo dos anos. Da mesma forma, fiquei lisonjeado quando uma fã porto-alegrense qualquer da Julieta Venegas utilizou uma entrevista minha para pedir autógrafo da cantora. Trabalhar no Correio sempre foi ter certeza de que o seu trabalho chegaria longe.

Ao longo de 12 anos, matérias foram o que não faltaram. E quem trabalha com internet, acaba não tendo editoria específica, então, neste tempo, eu cobri: o leilão da Cowparade (sim…), o bi do Inter na Libertadores, o tri do Grêmio na Libertadores, o incêndio no Mercado Público, inúmeros temporais, a repercussão da tragédia na boate Kiss, os protestos na rua em 2013, a Copa em 2014, a queda do Inter, o impeachment da Dilma, a greve dos caminhoneiros, seis eleições, a pandemia de Covid, entre tantas e tantas pautas que, uma a uma, me tornaram macaco velho de redação.

Para reportagens, consultas, blogs ou podcasts, tive oportunidade de entrevistar pessoas muito interessantes – assim como outras nem tanto – e fui longe pelo jornal: pro Japão, pro Uruguai – mas também escrevi sobre Panamá, Argentina, Espanha, Alemanha… –, pro Rio, pra São Paulo, pra Recife e, tão ou mais importante, pra Caxias do Sul. Uma trajetória e tanto, que aquele guri que lia o jornal na copa da casa da vó jamais imaginaria.

Ainda que nem todos os dias tenham sido belos – e, de fato, não foram – agora o que fica são as lembranças boas, os amigos e, claro, o agradecimento ao local que passou de inspiração à casa em que cresci e amadureci profissionalmente.

Da nossa essência

“O que somos nós se não a nossa essência?”

Foi esse o questionamento que ficou martelando na minha cabeça após ter visto e revisto algumas vezes o curta de animação “Juntos Novamente” (“Us Again”), lançado uns dias atrás no Disney+.

Nele, um casal de passado aparentemente feliz e dançante inicia a história em seu apartamento. Há música no ar, que contagia a esposa. O mesmo, porém, não se replica no homem, que, velho e amargurado, prefere o sofá – e o silêncio. Isso até ela partir, a solidão chegar e ele, graças a um milagre chuvoso, rejuvenescer. Claro, ele então parte atrás dela enquanto a chuva cai.

Enfim. É um curta e, em seis minutos se conhece todo roteiro em torno desta busca.

Mas depois do embalo de um bom ritmo do funk e do soul, me ficaram perguntas, ao fim do filme: o que nós somos resiste ao tempo? O quanto as concessões da vida nos transformam? E quanto já nos transformaram? Tudo isso não é filosofia demais para um simples curta que assisti acompanhado da minha filha no sofá de casa?

Noite dessas imaginei um encontro entre um Tiago de 20 e poucos anos e que recém começava a explorar ruas por aí e um eu já na casa dos 30 e tantos, mais velho – e provavelmente mais sisudo por conta do tempo acumulado. Acho que eles ainda teriam pontos de convergência importantes, ainda que por certo esbarrariam em convicções quase conflitantes, especialmente para um mesma pessoa.

Apesar de algum esforço, não consegui imaginar direito como seria essa conversa. Mas torci para eles se darem bem e que, ao fim, tenham reconhecido a própria essência.

2020 e AmarElo

Disse algumas vezes que o álbum AmarElo me ajudou a atravessar o nervoso mar de 2020. Em alguns dos muitos momentos mais tensos desse ano turbulento, me apeguei à letra e aos sons das músicas do Emicida. Mas, pensando cá, onde exatamente que AmarElo me ajudou? Foi na positividade. E fez de melodias o polo oposto do noticiário que estive (e estou) imerso, cheio das âncoras pesadas da dura realidade. AmarElo me foi ar na hora do sufoco.

Impossível não reagir ao ouvir repetidas vezes que “tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem, é nóis” enquanto minha filha crescia, mesmo ela ficando mais tempo em casa, mesmo tendo que abrir mão de umas brincadeiras tão salutares na primeira infância. Ou então escutar “cale o cansaço, refaça o laço, ofereça um abraço quente” depois de dias tempestuosos. – e que não foram poucos

Muitos dos versos desse trabalho tiveram e seguem tendo em mim um verdadeiro efeito terapêutico. E não precisam ser rebuscados ou com lições de moral. Eu os considero de uma simplicidade linda e tocante.

Talvez o meu inconsciente queira que eu retribua isso em 2021. Não através de composições, mas por positividades. Dei-me conta ao reparar que ao fim deste primeiro mês do ano, distribuí ao menos dois elogios gratuitos a pessoas de fora do meu círculo, as quais certamente nem lembram de mim corriqueiramente.

Tive o trabalho de entrar em contato e falar uma coisa boa, sem esperar nada em troca. Parece pouco, porém sabemos que é tão raro, isso de não deixar para depois. Da mesma forma que disse palavras de carinho sincero a velhas amigas que estão com pequenos rebentos em casa.

Passei algo bom, de maneira inesperada para elas. Fiz sorrir, sorri de volta. Numa época tão complicada, gestos simples podem ser lindos e tocantes. Se é influência de AmarElo ou até uma meta para 2021, não sei. Mas gosto deste verso: “Seja luz nesse dia cinzento”.

Aquilo que li em 2020

Absolutamente ninguém pediu, mas, sabe-se lá o porquê, rememorei os livros que li ao longo deste marcante 2020 que, apesar de todos os pesares, me nego a condená-lo – ainda tem um lado Poliana em mim dizendo que vamos sair melhores, de alguma forma.

Foi um período bem complicado, é verdade, mas ainda assim produtivo em termos de leituras, considerando a rotina de pai e editor de três sites em meio ao home office.

Então, puxando de memória, vamos lá:

• Gabriel García Marquez
Eu provavelmente leria todos os livros do Gabo em sequência, mas, como ensina o mestre Leonam, é bom poupar seu escritor favorito para sempre ter o que ler. Então encasquetei uns anos atrás de manter uma tradição de sempre ler algo dele todo início de ano. De birra, 2020 me fez ler mais, Doze Contos Pelegrinos, “Do amor e outros demônios” e um outro livro de contos que, a essa altura, já não lembro o nome. Não foram os mais marcantes, mas a gente repara a boa história quando sente saudade da personagem no dia seguinte que a história foi concluída. Aconteceu, porque Gabo sempre vale a pena.

• Amanhã Vai Ser Maior, Rosana Pineiro-Machado
Escrevi sobre esse livro em junho. Trata-se de uma obra fundamental para quem quer expurgar a extrema-direita do poder no Brasil. Um didático contexto do que aconteceu ao longo da década e das saídas que podem se apresentar. Li a primeira vez no kindle. Gostei e comprei o livro físico.

• A Máquina do Ódio, Patrícia Campos Mello
Se o livro da Rosana explica os caminhos sociológicos que levaram o Brasil até a extrema-direita, o de Campos Mello detalha como foi o trajeto prático, em especial via WhatsApp, de extremistas ao Planalto. É, também, uma aula de jornalismo.

Ailton Krenak
E se o princípio de uma retomada esteja numa reconexão nossa com a terra? Uma maneira de repensar a nossa relação com a natureza e a ancestralidade é o que propõe o escritor Ailton Krenak, de quem li “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” e “O amanhã não está à venda”. Ambos leituras rápidas e didáticas.

• Para educar crianças feministas, Chimamanda Ngozi Adichie
Eis aqui uma breve reflexão sobre feminismo, útil a quem está disposto a entender um pouco mais sobre a sociedade a qual crescemos. Pessoalmente, considero essencial para quem é pai de guria. Não precisa concordar com tudo, mas será importante se o texto conseguir ampliar a visão de mundo.

• Taxitramas volume 4, Mauro Castro
Mauro Castro é um escritor que explora um taxista. Ou um taxista que sustenta um escritor. Perambula há décadas pelas ruas de Porto Alegre em busca do seu ganha pão. É uma tarefa que inclui de aventuras que colocam sua vida em risco, mas que geram histórias que já renderam quatro livros. Uma boa rota de fuga de dias pesados.

• A Uruguaia, Pedro Mairal
Se esse post fosse relevante o suficiente para entregar uma espécie de troféu revelação, por certo iria para Pedro Mairal, por sua uruguaia. Não é um livro necessariamente leve, porém tem uma narrativa digna de roteiro cinematográfico, com um protagonista deveras real e um desfecho digno de palmas.

• Ruína y Leveza, Júlia Dantas
Escrevi aqui sobre esse livro. Se a narrativa d’A Uruguaia cairia bem no cinema, a história de Ruína tem muito de realidade para muitos adultos jovens de classe média alta de Porto Alegre. Um belo e inspirador romance para um ano que foi bem duro fora dos livros.