Ou uma pequena via crucis na burocracia do trânsito de Porto Alegre
Conheci Jesus pouco antes das 11 horas da manhã de quarta-feira. Enquanto ele exibia uma certa serenidade, eu estava furioso e – confesso – não cri neste senhor naquele primeiro momento, ao passo que entendia-me vítima de uma severa injustiça. Foi quando Jesus me disse: “Pensa, filho. Isso pode ter te livrado de uma situação muito pior ou até salvado a tua vida”.
Não que tenha ficado mais calmo, mas guardei as palavras de Jesus, apesar de duvidar um pouco delas. Logo depois, virei de costas e segui meu caminho. A pé, no caso, pois a moto com que andava foi guinchada justamente por Jesus, que cumpria ordens de agentes da Empresa Pública de Transporte e Circulação e da Brigada Militar.
A fins de contexto, minha infração foi ter trafegado com a moto sem placa, que havia caído dias antes. Parado em uma blitz, pouco adiantou eu ter um boletim de ocorrência relatando a perda da placa, a guia do Detran para a confecção de uma nova placa – já paga –, além de todo e cada documento e cópia requerida para esta enorme burocracia exigida por tal situação “inóspita”, como reconheceu um agente. Porém, ainda que compadecido com meu caso, e como ele cumpre ordens, mandou guinchar. Azar, o meu.
E Jesus levou minha moto.
Iniciava-se ali uma pequena via-crucis – claro que bem mais suave que a original. Era necessário vencer a burocracia e tirar a moto do depósito o quanto antes, pois vivemos uma época aqui em que tempo é, literalmente, dinheiro – no caso, pouco mais de R$ 22 por dia, pela tabela do Detran. E num fim de mês.
Lembrei-me de Jesus na primeira ida ao depósito, na manhã seguinte à blitz. Quando chegava lá – e bota lá, numa periferia limítrofe de Porto Alegre – percebi que alguém não poderia escutar as mesmas palavras que eu ouvi. Havia um motociclista estirado no chão, ferido. Caído, era acudido por pessoas simples, aparentemente desconhecidas, que o protegiam de um sol de quase meio-dia. Teria sido um destino meu evitado?
Entre idas e vindas, reencontrei Jesus e até troquei outras palavras com ele. Simpático, Jesus faz parte do povo. Sabe que a missão dada é árdua e seu trabalho não é simpático, quiçá injusto em alguns casos, mas precisa fazê-lo, pois até para ele é necessário ganhar a vida. Voltou a lamentar minha situação e me desejou sorte.
A burocracia pela placa nova – além de vistoria e emplacamento – foi vencida dois dias e meio após a blitz. Só que a autorização para enfim retirá-la apenas veio na quarta-feira seguinte. Esta nem tão pequena diferença fez o valor devido ao depósito mais que duplicar.
Passado tudo isso, o drama ainda resolveu se esticar um pouco mais na hora do resgate. Onde estaria a chave da minha moto, entre as centenas que estavam lá naquele verdadeiro cemitério de veículos, algumas há anos? Apesar de tanta taxa, erraram o mais simples dos protocolos e atrasaram um pouco mais a ressurreição veicular.
Quando ela enfim aconteceu, a primeira pessoa que vi do lado de fora foi Jesus. Tomava um café proletário, aquele de logo depois do almoço enquanto o serviço não aperta. Passando de moto, cumprimentei-o e levantei o punho em sinal de vitória. Ele sorriu.