Da cidade ao mundo, a crise climática é política

Parecia 1941, mas é 2024 | Foto: Martina Lersch

Estive em Belém na semana passada, a cidade que receberá a Conferência das Partes em 2030, a principal reunião de países sobre mudanças climáticas. É uma cidade que deve muito à pauta ambiental, mas é na minha casa, Porto Alegre, que agora escrevo próximo a uma condição de refugiado climático.

Próximo, mas assim muito distante, a bem da verdade. O mínimo fato de ter luz, estar abrigado, abastecido, seco e seguro de que aqui o Guaíba não chega me faz uma pessoa mais que privilegiada para o momento. Meus parentes e amigos estão em segurança. Logo mais vou dormir na minha cama.

Neste momento há um caos na cidade vizinha a minha e chove durante o que já é a maior enchente da cidade em 83 anos, tragédia que será tristemente noticiada em mais algumas poucas horas. Neste momento, há quase 4 mil pessoas da minha cidade em abrigos provisórios, sem contar quem foi pra casa de parente ou conhecido.

Muito ouvi, li e imaginei sobre a famosa enchente de 1941. Daqui em diante precisarei relatar o que presenciei nos dias da enchente de 2024, quando o Guaíba chegou ao nível de 5,25m, quase dois metros e meio acima da cota de inundação – quando considerado o ponto do Cais Mauá.

Hoje, ainda sob momento de piora desta crise, eu estava de folga, mas passei o dia recebendo fotos e informações. Eu caminhei na rua, fiz doações: uma mãe amamentando me olhou nos olhos e do fundo do coração desejou “que Deus te devolva em dobro” ao receber o que, no fim, era tão pouco para quem estava na situação em que ela se encontrava, numa esquina a quilômetros da ilha onde morava.

Eu vi uma pessoa caminhando aparentemente sem rumo com apenas um chinelo no pé e seu cachorro nos braços. Eu vi crianças brincando em meio ao caos de doações. Vi gente chorando, pessoas com olhar perdido e às vezes com uma mala ao lado. E ainda assim vi muito pouco.

O relato é dolorosamente triste por tudo o que não deveria ter acontecido, porém aconteceu. Porto Alegre, há 50 anos, tem um sistema robusto de proteção a enchentes. Tão forte quanto polêmico e, nos últimos anos, alvo de descaso. A falta de manutenção por parte de gestões municipais simpáticas a projetos imobiliários fomentou, e muito, o seu desmonte, que se não ocorreu na prática, foi por falta de tempo – e de um evento climático extremo como esse de agora.

Se ele tivesse funcionado a pleno, a cidade não teria alagado, me dizem.

O que se denuncia é que gestores da capital gaúcha deixaram de lado a tarefa de verificar se comportas estavam no trilho, se a lubrificação estava em dia, se a vedação funcionava. Não conferiram parafusos certos em locais certos em bombas de bombeamento, que nem sempre eram usadas. Enfim, trabalho para algumas manhãs no ano que foi esquecido. Precisaram de guindaste pra ajeitar comportas, não deu tempo de colocar um tanque de guerra ao lado de outra.

Em paralelo, o governo estadual – patrocinador de um grande projeto que considera a retirada de parte da estrutura deste sistema de defesa em Porto Alegre – promoveu desmonte da legislação ambiental recentemente. Foram pautas sempre “criticadas por ambientalistas”, mas convenientemente aprovadas pelo poder político.

Três semanas antes da torrencial chuva que caiu sobre o Rio Grande do Sul, o governador sancionou a mais recente flexibilização. Seu colega de partido havia relatado e feito aprovar na CCJ da Câmara outra proposta dessas que são capazes de transformar mata em pasto. Denota, então, que é projeto de sua corrente política, não acaso.

Aqui, o governador passou anos dizendo que ouvia a ciência, porém outra vez não quis dar ouvidos a ambientalistas, não raro estudiosos do assunto.

A relação entre política e meio ambiente, contudo, é conflituosa de maneira estrutural, de Norte a Sul. O atual governo do Brasil, ainda que não seja negacionista, ainda que tenha fortalecido algum tipo de atuação na área, não deixa de ser dúbio logo, talvez, em um momento-chave da própria humanidade.

Apesar de falar em transição verde, não veta de vez um projeto que quer perfurar na foz do Amazonas para encontrar petróleo. Por mais seguro que seja, por mais cuidados que tome, este governo admite o risco de um dia vazar óleo próximo a uma das maiores reservas de biodiversidade do planeta.

Volte-se a Belém. A perfuração do poço de petróleo, os recursos de créditos de carbono e seus usos estão em debate pela sociedade e pela academia. Participei de apresentações. Por estar geograficamente distante, talvez não tivesse a ideia da complexidade desta situação, que impacta inicial e diretamente comunidades ribeirinhas, pescadores e moradores da região. Mas que, ao fim, impacta a todos nós.

É impressionante aceitarmos estar distantes deste debate, enquanto tudo em meio ambiente é interligado. Seja na prevenção nas cidades, na liberação para o desmate perto de capitais ou na conivência em aceitar riscos às florestas. Tudo em nome de desenvolvimento, dinheiro, investimento? Em meio a tanta chuva ou tanta seca, vale a pena?

Mais que passou da hora de pensar nisso também quando não estamos sob um evento climático extremo. Aproveitemos por agora, porque logo mais esses períodos serão cada vez mais curtos e cobrarão um preço cada vez mais alto. Não há dinheiro que chegue – ou que valha a pena.

O Gabo de fevereiro

Há uma tradição que mantinha há alguns anos de sempre ter alguma obra de Gabriel García Márquez à mão nos meses de fevereiro para ser devorada. Via de regra é só uma, para não gastar tudo de uma vez só, como já ensinou o mestre Leonam em outras ocasiões, numa receita de como manter relação com nossos autores favoritos.

Por conta da correria que acabou sendo o segundo mês do ano, o Gabo de fevereiro só pôde dar às caras em março. E sequer era um Gabo legítimo, mas sim uma pupila do grande escritor colombiano, falecido há quase dez anos. Calhou-me de ler – e devorar – “A cabeça do santo”, de Socorro Acioli, ex-aluna de García Márquez.

Não se trata de lançamento, mas gostaria de frisar: Que livro, que história!

A história foi desenvolvida em uma oficina promovida por Gabo, em Cuba. Apresenta elementos de realismo fantástico em pleno sertão nordestino, num enredo com pitadas de amor, humor, religiosidade e sociedade.

Com protagonistas que despertam empatia, o livro tem do início ao fim um texto muito fluído, no qual cada capítulo acaba com um convite para ler o próximo.

Ainda preciso acertar as minhas contas com Gabo em 2024, e feliz por ter um inédito dele sendo lançado neste momento, adiando um pouco mais o temido dia em que haverei de ter lido toda sua produção. Mas por ora, a pupila substituiu o mestre em grande estilo.

Aprendizado

Certa feita publiquei um texto refletindo sobre os meus primeiros cinco anos como profissional. Foi uma crônica de desencantamento, um pouco sobre como sair das nuvens embriagantes de uma formatura para colocar o pé no chão nos desafios diários de uma redação de jornal. Lembrei dessas palavras nesses dias dezembristas, em que passamos a régua no que fizemos de bom e de ruim nos últimos 12 meses.

Se naquela oportunidade eram cinco anos enquanto formado, hoje estou perto de completar o primeiro quinquênio na dita “imprensa alternativa” ou “independente” – adjetivos que, admito, não gosto muito, mas que normalmente vêm colados à Matinal, quando esta é mencionada. São complementos que, não raro, soam até como elogiosos ao trabalho feito ali e não na “grande mídia”.

Neste caldo de pensamentos analíticos, também percebi que estou próximo de completar o primeiro ano na condição de mestrando. É algo que jamais havia projetado na minha carreira, em especial em outra área de formação, o planejamento urbano. E é algo que sempre me impõe a condição de mero aprendiz, desconsiderando boa parte da trajetória que tive até ali.

Somando as duas condições, fico feliz de reparar que entrarei em 2024 com um olhar cada vez mais crítico a respeito do que se passa ao redor, na pauta e nas ruas. Uma crítica sobre o que é e pode ser notícia, uma crítica sobre como ela deve ser relatada e publicada no seu caminho até o leitor, até o cidadão.

Hoje, dou um viva à implicância com certos termos que por muito tempo me passaram batido, como uma palavra ou sinônimo qualquer. Faço careta e descarto outras tantas palavras que se disfarçam de inocentes, mas cujos significados importam e impactam bastante à pauta e a quem as diz respeito. Talvez isso se chame experiência, o que não deixa de ser um processo de aprendizado.

Desde aquela reflexão sobre os cinco anos de carreira, lá se vai praticamente uma década. Entre tantas outras desilusões e festejos que se somariam àquele texto, é bom se perceber ainda com capacidade de aprender e, mais, de estar disposto a isso. É o que vejo como a minha contribuição. Pouca, claro, irrisória no cenário em que estou. Mas um pontinho a mais disposto a fazer um jornalismo melhor.

Entre comunicar e reportar

Assim como a milhões de brasileiros, a morte de Glória Maria me pegou de surpresa dias atrás. Com a TV no mudo, reparei em imagens sucessivas de arquivo da jornalista. Fui ao Twitter, rolei um pouco e estava lá. “Foi-se.”

Depois da confirmação, abri o link do G1 à procura da notícia. Reconheço que a minha curiosidade naquele momento era: afinal, quantos anos ela tinha? Não constava esta informação ali e tampouco na GloboNews, para onde a programação de casa migrou no momento seguinte.

Jornalisticamente, dá para dizer até que é errado, ou no mínimo incomum, noticiar a morte de alguém sem a informar a idade. É praxe constar datas de nascimento e falecimento nessas notícias. E isso aconteceu corriqueiramente em diversos veículos, mas não nos da Globo.

Talvez aí resida uma diferença entre comunicar e reportar. Sempre tão próximas, essas duas ações podem ter sutis diferenças a depender de quem as realize. Com a proximidade pessoal e profissional de Glória, uma Globo enlutada optou por manter a mística conservada pela própria jornalista ao longo de sua vida.

Preservou e respeitou aquilo que ela fazia questão de esconder e mesmo confundir. Ateu-se a comunicar tanto o falecimento, quanto a dor da perda.

Não foi o mesmo procedimento de outros tantos veículos. Alguns dos quais escancaram em títulos e redes sociais a idade de Glória, no que deve ter causado arrepios em seu espírito recém desencarnado. Não dá para dizer que estavam errados, porém, na hora da morte, lhes faltou empatia nesta ânsia de reportar. Uma ânsia que esperava a oportunidade para revelar um segredo. Um furo.

A propósito, a questão da idade da Glória Maria deixa de ter o quê de vaidade ou qualquer coisa assim quando se conhece mais o porquê disso. Ela mesmo contou no podcast Mano a Mano, em 2022.

Admito que se tivesse ouvido o podcast antes da morte dela, a idade nem seria motivo de curiosidade da minha parte. Apenas respeito a uma das maiores repórteres que vi em ação.

A Copa delas

Não foi a Copa do Neymar – tampouco, já que vivemos ainda num país polarizado – a do Richarlison. Foi a de Messi, claro. Mas sem sombra de dúvidas também foi a da Ana, da Karine, da Renata, da Carol, da Natália e de tantas outras jornalistas que nos acostumamos a acompanhar pela TV direto daquele pequeno país do Oriente Médio.

Aliás, frise-se, que momento. A conquista da participação efetiva na transmissão da Copa ao Brasil pelas mulheres veio a acontecer justamente em um desses recantos de mundo inóspitos às mulheres, onde ser e estar mulher é um desafio permanente, não raro perigoso. E desde o Catar, elas reportaram, comentaram e narraram ao vivo para todo o Brasil, esse país onde há mais mulheres do que homens, ainda que, até então, só marmanjos que falavam durante as Copas.

Eu tenho praticamente 37 anos, quase 14 de jornalismo profissional. Participei da cobertura in loco de uma Copa do Mundo – com muito menos mulheres falando de futebol – e uma filha de três anos. Ela até viu uns jogos no Catar, sem entender ou dar muita bola. Acho que vai começar a acompanhar mesmo os Mundiais a partir de 2026, isso se ela quiser.

Não sei como vai ser o futuro, qual seleção vai chegar melhor, muito menos a tecnologia que será dominante. Certo é que, para ela, sempre vão haver mulheres lá, porque as transmissões das Copas do Mundo puramente masculinas estão fadadas a não mais que o passado.

*trecho de artigo ainda a ser publicado

Três livros para as eleições de 2022

Charge de Galvão Bertazzi

Há muitos caminhos para a construção de um voto. Passam por crenças, ideologias, experiências, notícias e balanços. Quero adicionar, também, contexto. Em especial a uma eleição que se mostra demasiado importante na história da democracia brasileira.

Afora o noticiário, há três livros que gostaria de sugerir a quem tem alguma indecisão com relação ao seu candidato nas eleições presidenciais de 2 de outubro. Acho que vão ajudar a contextualizar a forma sobre como chegamos a esse momento, e talvez abrir mais horizontes a muitos que tentam entender a complexidade deste país chamado Brasil.

Óbvio, há tantos e tantos outros livros, artigos, textos e fotos a mais para se embasar votos. Essa é uma lista que pode crescer muito ainda. Mas, pudesse eu recomendar apenas três, seriam esses, porque sociologia, tecnologia e racismo são pontos que se destacam para este momento.

Amanhã vai ser maior, de Rosana Pinheiro-Machado
É preciso entender como Jair Bolsonaro, um deputado de sete mandatos vendendo-se como nova política, chegou ao poder. Foi uma conjuntura de fatos, sim. Mas é preciso compreender fundamentalmente como o discurso da extrema-direita colou em grande parte da população, inclusive na de baixa renda, para se construir alternativas ao radicalismo.

Máquina do Ódio, de Patrícia Campos Mello
Eleições têm regras para se deixar a disputa entre os candidatos mais justas. Essas regras foram sistematicamente quebradas em 2018 internet afora. Aproveitando-se de um judiciário lento e de um terreno fértil ao ódio nas redes sociais, a desinformação correu solta. O livro é um exemplo da contribuição que o bom jornalismo pode fazer à democracia.

Racismo Estrutural, de Sílvio Almeida
O Brasil é majoritariamente negro. Mas quantos negros há em postos-chave de poder, seja na esfera privada, seja na pública. E por quê? Quem visa um país mais justo precisa compreender as diferenças das dificuldades da vida de negros e brancos, acabando com o mito da igualdade racial. Leitores brancos que leem a partir da perspectiva de um intelectual negro podem ter muito a aprender um pouco mais sobre o Brasil real.

Elza

Não lembro exatamente quando conheci Elza Soares. O que recordo é que ela me causava um quê de incômodo. Não sabia, tampouco soube por muito tempo, explicar o porquê. Mas aquele som estridente da sua voz e o corpo desafiando o tempo eram algo que me tiravam um pouco do conforto.

Hoje eu entendo um pouco mais. Era racismo, puro e simples.

Não que eu fosse um racista propriamente dito, só que hoje entendo que fui criado em um ambiente em que este mal é algo estruturado na sociedade – a mesma que Elza venceu e brilhou.

À minha volta, negros sempre estavam presentes. Mas, por muito tempo, eram poucos e um tanto à margem do crescimento de mais um jovem branco de classe média em Porto Alegre.

Felizmente, a gente pode evoluir e, quando quer, pode buscar compreender o mundo que se vive na base da empatia, na base do conhecimento. Não somos perfeitos e crescemos rodeados de preconceitos que devemos lutar para desconstruir. Isso é uma lição que nem todo mundo aprende, mas deveria pelo menos tentar.

Elza Soares morreu numa tarde de quinta-feira. E eu que sou tão acostumado a saber e noticiar mortes de conhecidos, confesso que me peguei triste, de verdade.

Havia anos que Elza já não me causava incômodo nenhum, muito pelo contrário. Se não virei propriamente um fã de toda a sua obra, sou um grande admirador de sua vida, de sua força, de seu exemplo. Jamais sequer estive perto dela e a considero tão importante para a minha evolução como espírito e como pessoa em sociedade.

Obrigado, Elza!

***

A propósito, dois livros que li recentemente são de grande ajuda a quem busca entender mais sobre a estrutura do racismo na sociedade brasileira e seus danos: “Racismo Estrutural”, de Silvio Almeida; e “Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório.

Um ótimo ano para se deixar no passado

Ainda que termine melhor do que acabou, por toda a dor e aflição causadas ao longo de sua passagem, 2021 será um ótimo ano para chamar de “passado”. Mesmo que, junto a ele, a esperança de passar pela pandemia tenha se fortalecido, em seus dias e meses retornaram agruras que deviam ter ficado em épocas pretéritas.

O negacionismo recente fez voltar a pleno cenas como crianças nas sinaleiras, fome crescente, inflação alta, entre outros tantos problemas que lembram mais o país do fim do século passado do que o que o Brasil se tornou ao longo da primeira década deste. Mesmo que haja correntes de solidariedade, sempre parece insuficiente, por conta da grande desigualdade de distribuição de renda.

É desumano não se incomodar com essa situação. Porém, há alguns anos a humanidade do brasileiro polarizado pode ser questionada e, para muitos, todo o sofrimento alheio parece não existir.

O ano que termina trouxe sim esperança, um tempero de quase todo ano novo. Não é diferente com 2022, ainda que desde já se saiba que a polarização vai crescer em níveis altíssimos ao longo das semanas deste novo ciclo. Vai ser preciso força, convicção e determinação para colocar as coisas do passado no passado.

Com todos os seus tradicionais problemas, o Brasil é lindo e pode ser mais do que isso de hoje. É preciso resgatá-lo.

Ideologia, a palavra proibida da vez

Há uma palavra que vem sendo demonizada pela política brasileira, ideologia. Apesar de ser um substantivo, o termo é usado como se adjetivo fosse. “Fulano tem ideologia”, acusam uns. “Não se governa com ideologia”, bradam outros, afundando o nível do bom debate.

É esquecido, porém, que ideologia é tão inerente à política quanto a própria palavra “política” – que até dois anos atrás era ela a Geni da vez, a ponto de ser caudilhos tão rodados buscarem esconder-se sob um manto alegado da “nova política”, numa espécie de roupagem nova que deram ao trocar nomes de “partidos” – esse outro termo perseguido tempos atrás.

A verdade é que “ideologia” e “política” não são, tampouco devem ser entendidas, como ofensas. Integram a salada de termos que compõem uma democracia. Não há problema de ter ideologia, seja ela qual for, faz bem ser político e dado a diálogos com outrem. Problema é impô-la à força.

A média do eleitorado brasileiro precisa saber escapar de pequenas armadilhas como essas e a focar-se no debate que realmente interessa às suas comunidades, de municípios ao país. Cai bem também que agentes políticos deixem de criar essas situações, para torná-las o que são, de fato: ridículas.

Embates, rasos assim, ou forçam uma polarização que não é salutar à população ou fortalecem, junto a quem não acompanha o noticiário, o imaginário de que “políticos são todos iguais”. Não são, mas é preciso acompanhar para saber.

Nesse cenário, quando campanhas não agressivas entre os candidatos são mais exceções do que regras, os eleitores vão mais se afastando do processo do que aderindo a ele. Enquanto em 2016, um em cada quatro votantes optaram por não ir às urnas em Porto Alegre, em 2020 foi praticamente um em cada três.

Claro, tem o contexto da pandemia. Mas pode estar acontecendo uma fadiga desse debate pouco profundo, que fustiga e engana aquele que é pouco interessado em política. Ainda falta uma maior cultura de debate político na sociedade, algo que jovens parecem estar se interessando mais do que a geração passada. Esses, por sinal, que nasceram já sob a democracia brasileira.

Ideologias fazem a política, e não há problema algum nisso. Cabe a sociedade debater, escolher e moldar a sua política.

O que passou e o caminho a seguir

Em meio a cuidados de uma bebê de um ano e para não esquecer de limpar tudo com água, sabão e álcool gel quando necessário, as últimas férias também foram um período para uma breve e tímida tentativa de leitura. Apesar de escassas, renderam.

Destaco dois textos que acabam sendo um farol para o campo da esquerda em tempos pandêmicos de bolsonarismo no Brasil. “Dentro do Pesadelo”, um artigo de Fernando Barros e Silva na edição 164 da revista piauí, e o livro “Amanhã Vai Ser Maior”, de Rosana Pinheiro-Machado.

O primeiro é daqueles textos ainda raros na imprensa brasileira, com palavras certas em tons adequados. Grave. Há uma tendência no jornalismo brasileiro – e acabo por estar nisso – de amenizar o adjetivo ante a uma situação conflitante. Costumam sair termos como “racista” e “machista” para dar lugar ao vago “polêmico”.

O texto na piauí, porém, como o próprio nome já sugere, remete a algo pesado de alguém que cobriu a última eleição presidencial e o primeiro ano e meio do novo governo. Não que o que esteja acontecendo não pudesse ter sido esperado, vide a trajetória anterior do atual ocupante do Planalto. E aponta “cegos”, “omissos” e “cínicos” (inclusive nós, da imprensa) ao longo deste caminho:

O que define o bolsonarismo é o desprezo pelo Congresso, pelos partidos, pelas instituições, pela imprensa livre, pela sociedade civil organizada. Ele gosta do caos, ele gosta de dar tiros. Sua opção política funciona porque ele tem o Exército às suas costas. O projeto autoritário de Bolsonaro passa pela atrofia do poder civil e do estado laico, dois pilares da vida democrática.

Os tempos são duros, em especial para quem pensa à esquerda do espectro político. De 2016 pra cá, duras derrotas em diferentes níveis. Mas esse cenário começou a se desenhar quando, afinal? E o que fazer agora? Rosana Pinheiro-Machado, se não tem uma fórmula mágica, traz contexto e projeções em seu livro – um dos que mais fiz marcações na vida.

É preciso, explica ela, entender onde, quando e porque esse movimento de extrema-direita teve início para evitar novos erros que levem a futuras derrotas. Não basta apenas encher a boca e gritar “Eu avisei” na cara de qualquer um que esteja insatisfeito ou arrependido com o que está acontecendo. Vai ter que ter muito diálogo para começar a tentar a reverter a situação.

O que ocorreu no Brasil não se deu em função de um surto coletivo, mas de um não rompimento com nosso passado autoritário e com as estruturas que perpetuam a desigualdade.