Certa feita, em Vigo

Uma vez na vida estive em Vigo. Cidade que me pareceu mui simpática, na Galícia, costa espanhola. Localizada entre um relevo proeminente e um mar de um azul profundo, Vigo é um daqueles lugar que se simpatiza à primeira ou à segunda vista.

Estive em Vigo de passagem. Seriam – e foram – poucas horas. Daqueles encontros rápidos e fugazes que temos na vida e em, especial, durante viagens. Daqueles em que o tchau é provavelmente um adeus. Mal deu tempo de tirar foto. Gosto dessas situações. São marcadores de vida.

Estive em Vigo uma vez na vida, de passagem. Mas Vigo mal me viu. E isso porque cheguei quase passando a hora do almoço. Cheguei para pegar a última mesa de um restaurante e, quando acabei a refeição e o postre, já era hora da siesta.

E como os hispânicos respeitam a siesta!

Em pleno centro, lojas fechadas. Não por meia hora, uma horinha. E sim até, pelo menos, 16h30, 17h. Por que a pressa se a vida é longa? Pra que viver uma tarde com sono se pode-se estar relaxado? É uma filosofia e tanto de vida. Sinceramente, admirei.

Simpatizei com Vigo, ainda que mal possa dizer que estive por lá. Mesmo nessas horas fechadas de cidade, achei as poucas ruazinhas do centro aprazíveis de uma caminhada. Vigo, em plena sesta, cavou uma lembrança e uma micro-história que agora eu posso contar.

Se nos veremos de novo? Só o futuro decidirá. Mesmo entre bocejos, gostei de Vigo.

O Gabo de fevereiro

Há uma tradição que mantinha há alguns anos de sempre ter alguma obra de Gabriel García Márquez à mão nos meses de fevereiro para ser devorada. Via de regra é só uma, para não gastar tudo de uma vez só, como já ensinou o mestre Leonam em outras ocasiões, numa receita de como manter relação com nossos autores favoritos.

Por conta da correria que acabou sendo o segundo mês do ano, o Gabo de fevereiro só pôde dar às caras em março. E sequer era um Gabo legítimo, mas sim uma pupila do grande escritor colombiano, falecido há quase dez anos. Calhou-me de ler – e devorar – “A cabeça do santo”, de Socorro Acioli, ex-aluna de García Márquez.

Não se trata de lançamento, mas gostaria de frisar: Que livro, que história!

A história foi desenvolvida em uma oficina promovida por Gabo, em Cuba. Apresenta elementos de realismo fantástico em pleno sertão nordestino, num enredo com pitadas de amor, humor, religiosidade e sociedade.

Com protagonistas que despertam empatia, o livro tem do início ao fim um texto muito fluído, no qual cada capítulo acaba com um convite para ler o próximo.

Ainda preciso acertar as minhas contas com Gabo em 2024, e feliz por ter um inédito dele sendo lançado neste momento, adiando um pouco mais o temido dia em que haverei de ter lido toda sua produção. Mas por ora, a pupila substituiu o mestre em grande estilo.

Eduardo

Foi um puro acaso, desses que acontecem em viagens, que nos apresentou. Eduardo e nós – eu e meu pai – nos conhecemos em uma lavanderia no canto de uma praça no Porto. Um lugar sem atrativos quaisquer e não muito maior que cozinha de apartamento moderno, por onde se entra e se sai apenas por uma porta.

E é um atrapalhado, o Eduardo. Acionou o funcionamento da máquina, ao custo um tanto salgado de 5,50 euros, sem ter colocado suas roupas para dentro, o que obrigou-o a ver toda aquela água e sabão girando à toa por 27 minutos. Não com muito mais sorte, nós ao lado fizemos o procedimento certo, mas a máquina pifava.

Entre explicações com a dona do local – que demonstrou certa piedade do conterrâneo, permitindo-lhe que fizesse uma nova operação gratuitamente –, calhou-se, então, longos minutos de conversa. Português com um português enrolado, Eduardo gosta de falar, ainda que, imagino eu, provavelmente tenha alguma ideia de que não é sempre compreendido ao todo.

Entre suas histórias, percebeu-se, isso sim, é que o tempo fez mal a Eduardo. Tinha 60 anos neste fim de inverno de 2024, só que parecia um pouco mais, talvez bem mais. Sem saber exatamente como que chegara até ali, imaginei-o um tipo marinheiro aposentado, que talvez tenha ficado meio maluco quando viu-se em terra para sempre.

Conta, faceiro e com um quê de orgulho, que tem um irmão no Brasil. Onde? Não sabe. Em algum lugar do país, talvez próximo do Rio de Janeiro. Eduardo só não é morador de rua, porque vive num albergue, disponibilizado pelo governo português. Conforme frisou, só pode entrar até as 22h30, não tem drogas e tem assistência social.

Para sobreviver, além de pouso, recebe 500 euros, entre aposentadoria e auxílio estatal. O valor é um paradoxo para os interlocutores da vez. Enquanto é pouco, coisa de 60% do salário mínimo português, trata-se de um rendimento superior à média de 26 das 27 unidades federativas do Brasil e que, se não garante uma vida plenamente digna, poderia lhe oferecer um pouco mais de conforto em ares tropicais.

Eduardo, porém, provavelmente jamais fará ideia disso, vivendo seu dia a dia entre as ladeiras portuenses. Tem pouco, vive com pouco. E ainda assim oferece a sua amizade. Disse-lhe para ficar com Deus quando saí. Ele se despediu, então, com um sorriso sincero despontando entre uma barba mal feita e a prestatividade de que, se precisasse de qualquer coisa, estaria à disposição. Ali no albergue.

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Lisboa, de lá a agora

Passaram-se quase nove anos exatos, e umas quantas coisas. Eis que, enfim, reencontro os ares lisboetas mais uma vez. Ares, por conta do fim do inverno, mais frios, ventosos e chuvosos do que os do primeiro e primaveril encontro.

De lá para cá, mudamos, Lisboa e eu. Talvez experiência, talvez olhar mais crítico da minha parte, enquanto do outro lado as alterações de uma cidade – e um país, um continente e um mundo – pós-pandemia, em que, um dos seus mais notantes reflexos, é a desigualdade social. Em nove anos, assim como a percepção da inflação, o número de pedintes pelas ruas cresceu consideravelmente.

Há de se distinguir, porém, pobreza e violência. Em Lisboa, ao menos aparentemente, elas não caminham lado a lado. A vivacidade das ruas lisboetas segue alta, com gentes de diversos cantos de mundo indo para lá e para cá, para cima e para baixo.

Capital do país com uma das maiores médias de idade da Europa, Lisboa ainda tem um quê jovial em suas calçadas, contrastando com sua arquitetura tradicional e seus antigos bondes amarelos. Mas há um detalhe importante no meio das calçadas. O número de estrangeiros residentes está a crescer – e é, também, o responsável por não ter feito a população diminuir.

A ironia é que Portugal, outrora colonizador de terras de além mar, agora vive um processo inverso. Os estrangeiros é que vêm desbravar-lhe e a ganhar seus espaços – um ouvido um tanto mais distraído às vezes percebe mais idiomas mil do que o português com sotaque luso em espaços como o metrô. Ruim? Talvez não. E talvez Portugal até mesmo precise disse, como bem escreveu uma colega brasileira que vive em Lisboa.

Dentre as pautas da eleição deste 10 de março está o equilíbrio entre o ser cosmopolita e o quê xenófobo despertado em alguns por essa situação.

Outra pauta eleitoral é a habitação. Onde morar quando se é mais vantajoso, ao dono, alugar a turistas de passagem? Como conter uma gentrificação que melhora e devora centros históricos, tal qual o de Lisboa? O turista vem e deixa preciosos euros à economia. Mas essa mesma economia acaba por encarecer a vida de quem permanece ali. Não são assuntos fáceis que estarão na pauta do próximo congresso português.